domingo, 16 de junho de 2013

Crónicas dos Balurcos [2]





Escreve

José Rodrigues



OS BAILARICOS PÚBLICOS
1
Durante as férias de Natal, de Verão, mas sobretudo nas férias de Carnaval havia bailaricos que constituíam sempre uma “festa”. Quando as realizações eram nos Balurcos a deslocação era fácil, pior era, por carência de transporte, quando aconteciam longe, mas enfim, a pé de bicicleta ou, circunstancialmente, nalgum carro alugado, tudo servia, o essencial era ir.

Os bailes eram sempre “abrilhantados” por acordeonistas (a excepção era, naturalmente, a festa de Alcoutim). Lembro-me de ter conhecido alguns desde miúdo, mas no final dos anos 60, princípios de 70 “pontificava” o Joaquim Manel dos Farelos, o melhor nessa época, talvez por ser o único. Os bailes realizavam-se normalmente em armazéns ou salões com alguma dimensão, onde se construía um palanque para instalar uma cadeira onde se sentava o tocador debitando, a partir dali, a música composta basicamente por marchas, tangos, valsas e corridinhos. Muitas das vezes o tocador fechava os olhos de tal maneira, que a malta dizia que ele sabia a música “de cor”, e por isso até se dava ao luxo de adormecer, durante a função. Junto às paredes, em toda a volta da sala, as cadeiras onde normalmente se sentavam as meninas mais as mães; os rapazes deambulavam por ali e só se aproximavam quando o tocador dava início a mais uma “moda”. Quando isso acontecia, disfarçadamente lá dávamos um sinal para o par pretendido, com a dissimulação possível não fosse acontecer o “cabaço”, que ninguém gostava que fosse tornado público. O baile ia-se desenrolando com algumas pisadelas pelo meio, resultantes de algum encontrão de outro par, ou do desacerto da própria dupla, resultante do resvalar errático dos dedos do tocador pelas teclas do “fole”, falhando assim a sequência das notas, estabelecida pelo compositor, da melodia que se propôs replicar. Apesar de tudo, normalmente as coisas iam caminhando e a gente gostava.


Nos intervalos tomava-se qualquer coisa na tasca improvisada, que dava apoio aos organizadores, onde se bebiam cervejas, laranjadas e gasosas “refrescadas” em bidões de água com umas sacas de serapilheira humedecida por cima, que eram os “frigoríficos” possíveis, num tempo em que a energia eléctrica ainda estava para chegar.

A meio da noite procedia-se à rifa do bolo que rendia mais umas coroas. O “leiloeiro” subia ao palanque do tocador, e pedia silêncio. Agarrava na bandeja e começava: - Ora temos aqui um belo bolo, oferecido à organização do “balho”, que vamos agora rifar. Pra começar está em “5 mil réis”, quem dá mais? Isoladamente, ou em grupo, iam sendo feitas ofertas, que o apregoador ia divulgando, à sua maneira, com pompa e circunstância: - sete mil e quinhentos, quem dá mais?… Dez mil réis… Doze e quinhentos, quinze, dezassete e quinhentos… Quem dá mais? Dezassete e quinhentos,… dou-lhe uma … dou-lhe duas… Vinte escudos, ali para aquele canto… vinte escudos, quem dá mais? Os que se digladiavam, lá iam cobrindo os lanços, mas a maioria estava desejando que acabasse a “rifa” para que a música pudesse ser retomada prosseguindo assim a “balhação”. Quando a coisa já estava mais do que espremida o leiloeiro lá se decidia: … dou-lhe uma… dou-lhe duas… ninguém dá mais? … dou-lhe três…! E mandava entregar o produto rifado ao titular da maior oferta. Havia vezes em que se rifavam também garrafas de bebida “fina” (normalmente vinho do Porto).

E o baile lá continuava até que as mães das meninas impusessem o recolher obrigatório. Normalmente pelas 4/5 da manhã terminava, numa altura em que o cansaço já se apoderava de nós, apesar de novos, ou talvez por isso! Regressava-se a casa com a música “impressa” no cérebro e adormecíamos ao som das valsas e dos tangos.

OS BAILARICOS PRIVADOS

Por haver poucos bailes públicos, nós inventámos os privados! Primeiro com um gravador de fita e mais tarde um gira-discos, fraquinho diga-se, mas que cumpriu sempre a função sem um mínimo de falha, a não ser, como às vezes acontecia, que falhassem as pilhas.

O velho gira-discos. Foto JDR

Era a juventude dos Balurcos, já na altura não muito abundante, mas que dilatava em tempo de férias. Os que não estudavam já tinham “descido” ao litoral para trabalhar em hotéis ou rumado à Grande Lisboa, onde tinham familiares ou então assentado praça, como voluntários, na Marinha. Nas férias por lá nos encontrávamos e muitas vezes organizávamos os nossos petiscos, e os já referidos bailaricos. A iluminação provinha do candeeiro a petróleo que, para o caso, até nem era o mais importante, a não ser para mudar o disco! O essencial mesmo era que não se “acabassem” as pilhas, que faziam “girar” o toca-discos. Quando as ditas falhavam e não havia suplentes, chegávamos a fervê-las num tacho com água, por forma a durarem mais uma hora, meia hora, ou dez minutos que fossem. E resultava!

As músicas eram as da época e iam desde o consagrado Roberto Carlos, que até já queria “buzinar o calhambeque”, passando pelo promissor Júlio Iglésias, com o “canto a Galicia”, o Francisco José, com o sucesso da “guitarra minha toca baixinho”, os “vinte anos” dos Green Windows, “goodbye my love goodbye” e “we shall dance” de Demis Roussos, Neil Diamond com “song, song blue”, ou de Daniel Gerard com “butherfly”, ou ainda do romântico Adamô, que as meninas adoravam, com o seu tema “tombe la nége”. E havia ainda tantos outros como: Beatles, Credence Clear Water Revival, Janis Joplin, Nélson Ned, etc. É no entanto impossível esquecer, a cereja no topo do bolo, que foi “Je t'aime,...moi non plus” de Jane Birkin e Serge Gainsbourg, de longe o maior sucesso nesses encontros dançantes, vá-se lá saber porquê?! Suspeito eu que, pelo facto de o disco ter sido proibido de “passar” nas estações de rádio existentes nessa altura!


Tudo isto se passou nos últimos anos da ditadura em que inventávamos a nossa própria liberdade, para mais tarde acabarmos “presos”, conjugalmente falando, já em plena Democracia. Foram tempos, nem melhores nem piores, mas simplesmente diferentes que, naturalmente, recordamos com saudade.