domingo, 17 de março de 2013

Um fim de tarde em Alcoutim: sonho ou realidade [3]




Escreve

Amílcar Felício





De facto a primeira brisa da tarde naquele fim de dia sufocante de Agosto dos finais da década de cinquenta do século passado, tardava em chegar. E os homens por ali continuavam à conversa sentados no muro em frente à casa da Tia Catarina das Portas no diz que diz para entreter o tempo, enquanto enrolavam de vez em quando um cigarro de onça Duque ou de Três Vintes, encalmados com um calor dos diabos como já não se via há muito. Havia um ou outro que puxava por um cigarro Provisórios ou Definitivos, mas eram raros.

A vermelhidão do Céu para os lados dos Moinhos derrubados da Corte do Tabelião misturada com o sol que já ia baixo, fazia-nos imaginar o “Fogo do Inferno” dando-lhe uma coloração de romã bem madura e de uma tal intensidade que metia respeito, o que agourava grandes calores diziam os camponeses que se orientavam pelos sinais do tempo ao longo do ano, prevendo com uma precisão quase científica quer os dias de grandes calores e de grandes branduras durante as madrugadas de Verão, quer os dias de trovoadas e de grandes geadas no Inverno.
Moinhos derrubados ... Foto JV
 Méh!!! Méh!!! Méééééhhhh!!! ouve-se ao longe o rebanho do Ti Guerreiro, com uma ou outra magana de uma ovelha mais esganiçada e fora de tom e uma nuvem de pó que denunciava desde logo a sua presença. Vinham pelo Caminho do Pocinho adiante, com o pastor praticamente da minha idade, o meu amigo Zé das Cortes Pereiras atrás delas a orienta-las. Às vezes ia espera-lo e fazia-lhe companhia quando ele vinha mais cedo e lá íamos os dois atrás do rebanho até ao Castelo, aonde as ia amalhar.

Rua T. e Lima. Foto JV
Passa entretanto o pequeno Ti Perdigoto e quase que nem se dava por ele se não fosse a sua burrinha. “Mas o Ti Zé Revés ainda não passou e ele não se costuma atrasar (?)”, diz um dos presentes. “Com a calma que está não admira nada que o trabalho corra mais devagar e com certeza que vem mais tarde para casa (!)” diz logo outro a seguir, acrescentando que a esta hora já a Tia Custódia Peres estará a barafustar por causa da demora: “com esta calma, aquele homem quando chegar já tem o gaspacho a ferver, pois ainda tem que ir tratar dos animais e primeiro que ele se despache!” “Boas Tardes Ti Zé Altura (!)” respondem os homens ao cumprimento do Ti Zé que passava entretanto, pois embora trabalhasse no rio havia dias que entremeava com o trabalho no campo. Que raio de nome que haviam de pôr a um homem tão pequeno, parece mesmo que lhe puseram o raio do nome só para gozar com o homem!

Olha o Ti Adriano e a Tia Custoidinha “Zorra” como eu lhe chamava quando estávamos sozinhos, para ouvir depois as suas ameaças “qualquer dia levas (!), olha que eu dou-te (!), só tu é que me chamas isso, ouviste (?)”. Era mentira, todos lhe chamavam nas costas pela Custoidinha “Zorra” para a distinguir das outras Custódias que por lá havia na Vila. Possivelmente devem ter alguma hortinha por aí, pois o Ti Adriano só a apregoar e a vender peixe... “Viva ´Sargento´ Diogo, então e como é que vai o novo negócio (?)”, perguntam os homens ao Ti Diogo que vinha com a burra carregada de peças de fazenda, possivelmente das Cortes Pereiras e da Afonso Vicente e que experimentava agora esta nova maneira de ganhar a vida. “Cá se vai andando rapazes, cá se vai andando, mas o pessoal anda com pouco dinheiro...” responde ele calmamente a caminho de casa.
Rua D. Sancho II onde vivia o
"Sargento" Diogo.

O Manel Sapateiro passava apressado sem dar de vaia a ninguém com um molho de corriol às costas, pois ainda tinha que ir dar comida aos coelhos. “Este Manel tão bom moço e com tão pouca sorte, comentam os homens... depois de um dia de trabalho na Oficina com o pai e com o tio Chico desde as 7 ou as 8 horas da manhã, ainda tem que ir apanhar erva e tratar dos coelhos!” Às vezes lá se safa mais cedo da Oficina digo-lhes eu e aproveita a ida à erva para dar dois chutos na bola, quando estamos a jogar na Fonte Primeira. O Manel Tostão vinha logo a seguir. “Estás por cá agora Manel, não me digas que vieste passar as férias à Vila (?)”, pergunta um dos homens. Mas o Manel Tostão ia tão distraído, que só disse Boas Tardes com aquele seu sotaque já à moda de Vila Real. “Este com aquele sotaque também já deve ter bebido água do Poço Velho lá em Vila Real”, diz maliciosamente um dos presentes. “Se calhar contratou para aí algum cercado ao terço, diz logo outro a seguir e sempre fica com umas amêndoas para o seu próprio fabrico de bolos, pois apesar de sacristão, nunca abandonou a arte mesmo depois de se ter ido embora da Vila”.

“Boa Tarde, estávamos a ver que não vinha hoje Ti Domingos!” “Boa Tarde pessoal”, responde o Ti Domingos da Lourinhã que ia a cavalo na sua burra pois a idade já era muita e com vontade de chegar a casa o mais depressa possível para tratar do jantar. Era quase sempre dos últimos a chegar à Vila, e agora ainda por cima desde que os filhos se foram embora depois que o Senhor Munhós fechou a Padaria, vivia sozinho e ainda tinha que ir fazer o gaspacho e era por isso que era sempre dos últimos a chegar à Venda do Ti António Joaquim. Logo a seguir vinha o Ti Zé da Horta com a sua burrinha pela mão, quase ao mesmo tempo que o criado dos Caimotos, o Ti João Borralho. Possivelmente combinam-se e como as casas são perto uma da outra, sempre fazem companhia e vão trocando umas palavras pelo caminho. O Ti Zé Brandão seguia-os a uns cinquenta metros. “Óh Ti Zé que grande carga de lenha que leva diz-lhe um dos homens, olhe que hoje vai ter que fazer um bom serão para descarregar a burra e arrumar essa lenha toda?” “Nem pensem nisso... isto vai ser rápido, isto vai ser rápido podem crer!”

Casa onde vivia Mestre Cândido
O Mestre Cândido passava entretanto e virava para a calçada direito ao Largo da Parada. “Então esse ontem avariou-se (?)” pergunta um dos homens ao Mestre Cândido que se deslocava com dificuldade de Petromax na mão e escada às costas. “É verdade rapazes, este ontem não estava a funcionar lá muito bem e tive que lhe dar para aqui uns apertos, pois ali no Largo da Parada sempre faz falta para a entrada na Vila”. O Senhor Leopoldo passava de novo estranhamente para o Celeiro. Àquelas horas os homens admiraram-se e perguntam-lhe se vai fazer serão ao que ele responde que não, que se tinha esquecido de meter os pintassilgos no Celeiro e já agora aproveitava e tratava logo deles. “Você também já não lhe bastavam os canários que tem lá em casa, agora também arranjou mais esses para se coçar”, diz-lhe logo um dos presentes. Mas o Senhor Leopoldo era mesmo assim, era um passarinheiro apaixonado que fazia reprodução de canários e que se dedicava a todos os pintassilgos que por ali procriavam junto ao Celeiro, principalmente na amendoeira junto ao aqueduto do Caminho do Poço das Figueiras perto da casa do Ti Robalo.

“Que esquisito comenta um dos homens, o Ti António Soeiro e o Senhor José Soeiro ainda por lá andam, não dei por eles passarem! Querem lá ver que deu algum trangomango ao homem, pois o Senhor José Soeiro como é epilético costumam dar-lhe aquelas salipantas”. “Se calhar ficaram sem água na nora diz logo outro e como as marés são vivas, possivelmente estão à espera que a nora faça alguma água para acabar de regar o laranjal”. Deve ser isso e de certeza que a minha amiga Ritinha Soeiro aproveitou o atraso para fazer uma limpeza mais a fundo nos galinheiros, pensei logo cá para mim.
Rua Dr. João Dias onde viviam os irmãos "Soeiro".
Óleo de JV
 Vê-se ao longe o Amigo António do Brejo que vinha pelo Caminho do Pocinho. “Olhem o Sacramento do Altar hoje também vem pela Vila que fino”, agitam-se os homens no muro mal o vêm à distância. “Isso é porque deixou a cabra a pastar no campo esta noite, se não tinha ido pelo Caminho do Celeiro”, diz logo outro a seguir. Os homens não resistem à sua passagem e mal ele pisa a calçada metem-se logo com ele: “Olha o Amigo António que gordo e lustroso que anda caramba, mas que bela panela com que ele anda agora (!)”,  dispara de imediato um provocador. O Amigo António para, enfrenta aquele magote de gente e interpela o provocador: “olha lá pá, já jantaste?” Não, responde-lhe o provocador meio acabrunhado. “Então anda já comigo que eu vou despeja-la (!)” e lá segue na sua passada curta pela calçada adiante, cigarro de mortalha ao canto da boca como se nada tivesse acontecido.

E no meio da gargalhada geral e do riso amarelo do provocador, os homens por ali continuavam à espera de uma brisa que estava difícil de chegar...

(continua)