quarta-feira, 6 de março de 2013

O último barqueiro do rio Guadiana - Há 20 anos entre Portugal e Espanha


(PUBLICADO NO CORREIO DA MANHÃ DE 27 DE JANEIRO DE 1994)

Texto
de
João dos Reis

Faro (da nossa Delegação)

A fronteira entre Alcoutim e a povoação espanhola de San Lucar del Guadiana, ainda não funciona como as duas terras desejavam. Os alcoutinenses e os espanhóis, ainda muito antes das directrizes da União Europeia para a abertura franca de todas as fronteiras visitavam-se mais ou menos com uma certa frequência, embora, apenas um ou dois dias por ano é que a fronteira está oficialmente aberta.

Num, porque é dia da vila de Alcoutim, noutro, porque é também festa em San Lucar del Guadiana ou Sanlucar.

Desde que o generalíssimo Franco mandou encerrar a fronteira, facto que aconteceu durante a Guerra Civil Espanhola, que as duas povoações estiveram sempre de costas voltadas. Apesar de tudo, a travessia nos dois sentidos processou-se sempre, ante o olhar cúmplice das autoridades dos dois países.


Sem ponte ou ferry boat, os alcoutinenses e as gentes de Sanlucar, que lhe fica em frente, continuam a fazer o trajecto com a ajuda de velhos barqueiros espanhóis e um português, o único que existe na vila de Alcoutim, o “ti” João Parreira Baptista, de quase 70 anos, que nasceu junto ao rio Guadiana, correu mundo e regressou novamente para junto dele.

Fomos encontrá-lo no regresso de mais uma viagem que tinha acabado de fazer entre Alcoutim e San Lucar del Guadiana.

Amarrou o barco com uma corda de nylon à velha margem do rio por onde navegaram celtas, cartagineses, romanos, árabes e por onde agora transitam alguns iates de envergadura.”Ti” João Parreira Baptista, mais popularmente tratado por “ti” João, é uma figura de barqueiro bem conhecida em toda a vila que um dia o viu nascer.

“Transporto os turistas, alguém que queira passar para o outro lado, a fazer compras. Ás vezes faço pequenos passeios pelo rio. Passo assim o meu tempo, distraio-me com as brincadeiras dos turistas, com todas as pessoas que transporto para Espanha”, diz-nos.

“Ti” João Parreira Baptista é um homem que mede bem as palavras que pronuncia. Em menino, andou no transporte de areia, ajudou a construir o cais que há muitos anos servia de porto de acostagem aos barcos que então desciam o velho rio Guadiana em direcção a Vila Real de Santo António. Barcos que navegavam carregados de minério das minas de São Domingos, no desolado Baixo Alentejo e que eram carregados no velho porto do Pomarão.

“Eram outros tempos que eu não esqueço. Hoje, nos nossos dias, os tempos são outros. Os barcos que transportavam o minério e muitas outras coisas, já acabaram. O rio está morto. Aquela vida cheia de alegria que eu ainda conheci quando era novo”, esclarece.

Apesar da fronteira ainda não estar oficialmente aberta, “ti” João lá vai vivendo a vida no transporte das pessoas para Sanlucar. Sobretudo portugueses que querem ir consultar um famoso curandeiro espanhol que vive e trabalha a cerca de 10 quilómetros de Sanlucar.

“Muita gente quer ir tratar-se ao curandeiro António, que toda a gente conhece como o curandeiro do Granado. O curandeiro António diz e faz coisas que a gente nem imagina, Cura doenças que os médicos não conseguem curar”, adianta.

“Ti” João Parreira Baptista foi muitos anos condutor de máquinas na Marinha de Guerra. Correu mundo e reformou-se há cerca de 20 anos. Andou 32 anos pelos mares que lhe deram uma vivência superior àquela que a vida dura de Alcoutim lhe tinha dado.

“Quando me reformei, voltei para Alcoutim, para junto do rio. Vivia cá um velhote que fazia estas carreiras que eu hoje faço. Começou a andar doente. Antes de falecer, propôs-me este negócio. Fiquei-lhe com o barco em madeira, que mais tarde troquei por este, em fibra, que é muito melhor e não necessita de tanta manutenção. Era conhecido por Zé Altura. Uma boa pessoa que eu conheci muito bem”, prossegue, ainda, “ti” João.

Ainda é preciso pedir autorização

“Ti” João Baptista diz-nos que as pessoas, para atravessarem a fronteira entre Alcoutim e San Lucar del Guadiana ainda têm que ir pedir autorização à Guarda Fiscal (Brigada Fiscal da GNR).

“Só passo com as pessoas depois de elas terem obtido autorização Só não peço autorização quando a fronteira está aberta nos dias de festa. Dizem que esse problema vai acabar a partir a partir do próximo dia 1 de Fevereiro. Ainda hoje de manhã ouvi isso no meu rádio”, adianta.

À noite, sendo Alcoutim uma vila morta, alguns dos seus habitantes costumam deslocar-se até Sanlucar, “p`ra beber uns copitos”, diz.

“As autoridades fecham os olhos quando são pessoas conhecidas. Tenho mais fregueses no Verão que no Inverno, que está a ser muito morto este ano”, prossegue.

Leva apenas 100 escudos por cada viagem que faz. A não ser aos passeios porque a gasolina está cara, tornando os custos mais elevados e que os turista têm suportar, pagar mais caro. “Ti” João Baptista tem uma média, neste tempo de Inverno bem friorento, cerca de 5 a 6 clientes por dia, que quase não dá para viver.

“Se não fosse a minha reforma, morreria de fome. Tinha que arranjar outro modo de vida”, exclama, sorrindo com o seu rosto de muitas décadas.

Para “ti” João Parreira Baptista, ser barqueiro é um modo de vida como qualquer outro. Só que para ele, que nasceu junto ao rio Guadiana, é diferente. Nasceu com o rio.

Possui dois cães que o adoram. A “Carocha”, uma cadela preta que nunca o deixa sozinho. Ao outro animal deu-lhe o nome de “Guadiana”. Um esperto cão de cor castanha que também não o abandona.

“Quando vou para o outro lado, para Espanha, ficam sempre aqui à minha espera. Agora fui comprar a Sanlucar um pouco de “cascarilla” (tipo de pimentão vermelho próprio para temperar chouriças). Eles ficaram à minha espera. É sempre assim”.

“Ti” João Parreira Baptista: o único barqueiro do rio Guadiana que o viu nascer e com ele quer acabar o resto dos dias que ainda lhe faltam.

“O rio foi sempre meu. Quero que ele continue a ser meu, mesmo que amanhã deixe de ser barqueiro”, finaliza, “ti” João.

Foto: Luís Forra.