terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Um fim de tarde em Alcoutim:sonho ou realidade? [2]





Escreve

Amílcar Felício 



Portas de Mértola. Foto JV
 De facto com o fim do dia e o regresso a casa, Alcoutim e todas as Casas de Campo envolventes ganhavam outra vida naqueles finais da década de cinquenta do século passado, como vimos na crónica anterior. Os sons do clarinete ou do saxofone com que o Mestre João Ricardo acabava normalmente os seus dias de trabalho na Barbearia, esgueiravam-se melodiosamente pela Praça e esbatiam-se melosa e suavemente pelo alcatrão escaldante estrada acima, naquela tarde calorenta de Agosto.

Os homens sentados no muro em frente à casa da Tia Catarina das Portas embalados por aquela música de fundo, lá continuavam naquela moleza à espera do primeiro fresco da tarde. Para saírem daquele entorpecimento iam falando de tudo e de quase nada ou dizendo umas larachas às moças que entretanto passavam alegres e em grupo, com a infusa ao quadril a caminho do Pocinho. A Maria Tomásia ia quase sempre atrás delas para se defender dos impropérios, que alguns desbocados mais atrevidos lhe dirigiam.

Pego Fundo de outros tempos. Foto JV
 As Lavadeiras de Caneças alcoutenejas – a Tia Maximina e a Tia Alice Pandareta – lá vinham de canastra à cabeça, depois de uma tarde inteira a lavar roupa no Pego Fundo e cruzam-se com as moças mesmo à entrada da Vila. A Tia Maximina preocupada com a catrefada de gente que tinha lá em casa para alimentar pois seriam mais de dez, pergunta à Aurora se a Idalina não se tinha esquecido de tratar do jantar, ao que ela responde que até já estava ao lume mas que ainda devia faltar uma boa meia hora para estar pronto, possivelmente só quando chegasse do Pocinho.

O Mestre Carlos Sapateiro assobiando no seu famoso e popular”prega-saltos”pedalava ligeiro estrada acima e quando os homens o questionam aonde é que ia, respondeu como sempre na sua maneira de falar de rajada como se fosse uma metralhadora e brincalhona de quem leva a vida pouco a sério, de que ia “à do Ti Chico das Quatro Estradas beber um pirolito, que é muito mais barato do que na Vila”. A garotada mais miúda na sua algazarra frenética não parava, ora estrada acima direito ao Celeiro ora estrada abaixo direito à Praça, com uma cana entre as pernas a fazer de cavalo e uma corda entre as mãos atada à ponta da cana, como se montassem um Puro Sangue Lusitano. E não é que os sacanas dos “cavalos” até relinchavam, caramba!

Talvez influenciados pelas tropelias da miudagem, o Gonçalves e o “maluco de Giões” como era conhecido, passavam entretanto a correr descalços como sempre. Os homens perguntam-lhes “então mas de aonde é que vocês vêm a esta hora (?)”. O Gonçalves que ia à frente gritando “bruuuuhhhh... bruuuuhhhh... bruuuuhhhh...” responde que “é a camioneta que está a chegar à Vila”. O “maluco de Giões” um pouco mais lúcido do que o Gonçalves e por quem sentia um certo paternalismo, ria-se e comentava que “este gajo nunca mais tem juízo, cada vez está mais maluco (!)” e lá continuam os dois na sua correria desenfreada estrada abaixo, direitos à Praça!

O Gonçalves teria uns vinte e muitos anos e o “maluco de Giões” já um pouco mais velho, andaria na casa dos trinta. Eram dois dementes pacíficos que não se metiam com ninguém, acarinhados pelo povo que lhes dava comida e que de tempos a tempos, percorriam juntos o Concelho sempre a pé. O “maluco de Giões” tinha por hábito vir a Alcoutim duas ou três vezes por ano, possivelmente visitar o seu amigo Gonçalves. Dormiam nos escombros das casas abandonadas. O Gonçalves dormia normalmente numas casas derrubadas que existiam entre a casa dos Caimotos e a Estalagem da Tia Libânia entretanto desaparecidas, para dar lugar ao largo existente na fachada principal do Castelo. Andava quase sempre com as calças rotas no rabo pelo que quando se sentava, ficava invariavelmente com a ferramenta à vista para deleite de uma ou outra mulher mais arrojada que o fustigava, “mas tu nunca mais tens vergonha de”tar”sempre com isso à mostra Gonçalves (?), mete lá isso já”p´ra dentro (!)”, mas o Gonçalves eternamente a sorrir, lá continuava impávido e sereno na sua sacrossanta ingenuidade a dar ar à minhoca, como se não fosse nada com ele.

Passadeiras na Ribeira de Cadavais. Foto JV
 Havia sons naquela época que chegavam à Rua das Portas de Mértola aonde eu passava a maior parte do dia e uma boa parte da noite, que nos ficariam gravados para sempre nas profundezas da nossa memória como se tivessem sido ontem, como o ronco tenebroso durante a noite das Ribeiradas nas passadeiras da Fonte Primeira ou os gritos lancinantes e arrepiantes do Gonçalves, quando os homens lhe davam banho em pelota naqueles invernos gelados no Pego Fundo com direito a roupa lavada, principalmente para a Ceia de Natal que o velho Dr. João Dias organizava em sua casa para os pobres, no meio da habitual fofoca alcouteneja que em privado não poupava nas palavras. Mas adiante...

Lá passa entretanto o Ti Mário com o seu macho pela arreata, incansável contador de estórias e de sonhos, sempre com esperança na vida e num futuro melhor, com a gorpelha cheia de canastras de amêndoas e de maçarocas de milho e logo a seguir o Ti Alfredo das Portas, a cavalo na sua mula bem arreada com uma bela albarda e com a sua nova burra logo atrás, ainda pouco habituada àquelas andanças com os alforges cheios de abóboras, frades e alguns melões e melancias. Trazia também umas alfarrobas e alguns figos de tuna para os porcos. Já vinham sozinhos pois os filhos como tantos outros, há muito que tinham batido a asa para a tropa e até já algumas das filhas tinham casado, ficando a casa mais vazia.

Aquela nova burra do Ti Alfredo, tinha vindo substituir a última burra que lhe tinha morrido enforcada numa noite desgraçada na arramada e que o fez chorar convulsivamente como uma criança, apesar de ser um homem temperado pela 1ª Guerra Mundial em França, da qual guardava como lembrança mas que nunca utilizava, o garfo e a colher que por lá tinha usado. Nunca lhe tinha visto nem nunca mais lhe voltaria a ver uma lágrima a correr por aquela cara abaixo! Aquela burra tinha sido a sua companhia anos e anos no seu trabalho solitário entre a Hortinha no Pocinho, a Corte da Seda e o Alcaçarinho. Possivelmente só quem viveu situações semelhantes poderá compreender tais sentimentos. A Tia Catarina das Portas debruçada no parapeito do seu muro altaneiro, contemplava lá do alto e em silêncio o movimento dos que passavam, depois de um dia de trabalho que ainda estava longe de chegar ao fim, enquanto as brasas das estevas iam apurando em lume brando o jantar de grão que tinha na pelengana em cima da trempe, para a refeição da noite que se aproximava.

Ribeira de Cadavais. Sítio do Pego das Portas. Foto JV
Chega o Ti Pimenta também, com uma cabra pela mão provavelmente para matar no dia seguinte, pois havia já alguns dias que não tinha carne no talho. Tenho que avisar a minha mãe, pensei eu logo cá para mim, para perguntar à Tia Nascimento pois carne de cabra é sempre mais rara e acaba depressa! Um dos criados do Senhor Serafim vinha logo a seguir atrás das vacas, enquanto os outros ainda continuavam na Eira do Cerro do Celeiro com as bestas, à espera que se levantasse algum vento para acabar a debulha. Quase ao mesmo tempo passa o Senhor Antunes Guarda-Rio, que foi dar uma volta pela Ribeira para ver se estava tudo em ordem. Olha o Senhor Zé Custódio e o Senhor Santos Guarda-Fios hoje vêm juntos, comentam os homens. Se calhar tiveram algum trabalho mais complicado e tiveram que ir os dois, diz logo outro a seguir.

Na encosta da Igreja da Nossa Senhora da Conceição o Senhor António do Vinagre a que todos chamavam de Ti Enterrador, indiferente ao que se passava lá em baixo nas Portas ainda regava os pequenos eucaliptos que ele próprio tinha plantado. Vamos lá a ver mas é se pegam todos, comentavam os homens uns para os outros, pois sempre faziam uma entrada na Vila mais bonita!

A brisa da tarde estava difícil de chegar às Portas mas o regresso a casa naquele dia, fazia-se a bom ritmo como habitualmente. Contudo, ainda estávamos longe de chegar ao fim como veremos na próxima crónica.

(continua)