domingo, 3 de fevereiro de 2013

O "Betabê"


Pequena nota
Este texto é retirado com a devida vénia de um interessante livrinho (págs. 35 a 37) que tem por título Memória de algumas Figuras Populares de Chaves em meados do Século XX e que o autor teve a amabilidade de nos oferecer.
JV

 


Escreve

José Temudo



Aconteceu-me sempre assim quando abro o baú das recordações. Como no caso das cerejas, puxo por uma e logo vem um rosário delas.

Tendo falado do Joaquim Cavalo, preparava-me para fechar o baú, quando fui surpreendido por uma voz que assim me interpelou:

“E eu? Não quer falar de mim? Acaso não fui eu tão popular quanto os outros de quem já falou?”

Era o “Betabê”que assim falava enquanto pulava do baú para a minha secrtetária e se colocava bem à minha frente.

Na verdade, pensei, como pude esquecer o Betabê, que a cidade inteira conhecia? Tem razão o pobre diabo, como pude esquecê-lo?

Quando o conheci, o Betabê era engraxador do Café Comercial. À época, o melhor café da cidade. Os fregueses gostavam dele, mas “picavam-no”, só para o ouvirem ripostar, nem sempre nos melhores termos, na sua linguagem de “cecemelo” (regionalismo que significa “ceceoso”). Não teria, ainda, quarenta anos. Era de estatura média, de cabelo e barba ruça, a puxar para o ruivo, ambos ralos e ressequidos, como que a lembrar a miséria de vida que fora a sua desde que nascera. Aquele lugar de engraxador no Café Comercial tinha sido até então, o seu melhor ganha-pão. Aliás, aquele lugar de engraxador no melhor café de Chaves era muito disputado pelos muitos outros engraxadores que havia na cidade, a maior parte deles trabalhadores ao ar livre. O preço do serviço e as gorjetas davam para os gastos mais necessários e imediatos do Betabê; para o resto, roupa e calçado, contava com a generosidade dos clientes, que sempre aparecia quando o viam mais necessitado. E é sobre este aspecto que eu vou contar uma “historieta” que muito fez rir a cidade.

Um dos clientes do Café e do Betabê era um engenheiro, director dos serviços florestais daquela zona. Era um homem dos seus 45 anos, de boa constituição física; alfacinha puro, educado e comunicativo, andava sempre impecavelmente vestido e calçado. Tinha um ar refinado, havia mesmo quem o achasse “snob”. Uma virtude ele não tinha, mas isso, em Chaves, não incomodava ninguém. Casado, não era homem de uma só cama! E foi através do Betabê, dos “bons serviços do Betabê”que ele estabelecera relações com uma moça muito cobiçada e que já tinha passado pelas mãos de dois ou três amantes que lhe tinham proporcionado uma vida regalada. O Betabê foi, naturalmente, recompensado. O engenheiro arranjou-lhe um emprego qualquer nos serviços que dirigia, uma espécie de moço de recados, pago pelo orçamento do Estado.

In kidsalfabetizaca.blogspot.com
Ainda antes do Betabê ter entrado para o “serviço público”, num dia em que estava engraxando os sapatos ao engenheiro, disse-lhe:

“Bonitos sapatos, estes, sr. Engenheiro!”
“Gostas deles, Betabê?”
“Se gosto deles, sr. Engenheiro? Isto é do melhor que há!”
“Que número calças, Betabê?, “perguntou-lhe o engenheiro.
“Quarenta e um, sr. Engenheiro.”
“Também eu. Pois, fica sabendo que quando me cansar deles, ofereço-tos!”
“O sr. Engenheiro está a gozar comigo? Ia, agora, dar-me estes sapatos!”
“O que está dito, está dito”, disse-lhe o engenheiro.
“Palavra de honra, sr. Engenheiro?”
“Eu só tenho uma palavra, Betabê!, disse o engenheiro com prosápia.

A partir deste momento, o Betabê passou a olhar para aqueles sapatos como coisa sua. Se era cuidadoso a engraxar quaisquer outros, com aqueles refinava os cuidados. Entretanto, o Betabê continuou a engraxar os sapatos ao engenheiro, não só os que lhe estavam prometidos, como também alguns outros pares, que o homem era um autêntico “dandy” e gostava pouco de repetir o que vestia e o que calçava. Mas um dia, por sinal um dia de muita chuva, o Betabê ficou estarrecido e sem fala quando viu o engenheiro entrar no café com os sapatos, aqueles belos sapatos, que lhe estavam prometidos, todos enlameados! E só quando o engenheiro, já sentado, lhe fez sinal para lhe ir engraxar os sapatos, é que o Betabê saiu do pasmo em que tinha ficado. De má catadura, sem cumprimentar o cliente, sem mesmo olhar para ele, começou a limpar-lhe os sapatos. O engenheiro estranhou-lhe o silêncio e a cara de poucos amigos e interpelou-o:

“Que diabo tens tu, Betabê? Trataram-te mal?”
“Ninguém me tratou mal, sr, Engenheiro.”
“Então dói-te a barriga?”, perguntou-lhe o engenheiro em tom de gozo.
“Porra sr. Engenheiro, dá-me cabo dos sapatos e depois ainda me pergunta se me dói a barriga? Isso, é fazer pouco dos pobres!”

Num primeiro momento, o engenheiro ficou irritado, de testa franzida, com o tom acrimonioso da resposta daquela infeliz criatura; mas bem depressa se lembrou do compromisso que assumira de lhe oferecer aquele par de sapatos quando deles se cansasse. Riu-se tanto, achou-lhe tanta graça, que não perdia a oportunidade de contar aquele episódio às pessoas do seu convívio.