quarta-feira, 28 de novembro de 2012

As Casas de Hóspedes em Alcoutim até meados do séc. passado [3]


PENSÃO MARREIROS

Neste desenvolvimento das “Casas de Hóspedes” em Alcoutim pois é assim que são designadas nos conhecidos e não sei se ainda existentes Anuários Comerciais, avantajados volumes onde de tudo aparecia. Apesar das imperfeições contidas e provenientes dos representantes locais que procuravam preencher todo o formulário, o que não era fácil de fazer, ainda hoje constituem para mim uma fonte de pesquisa.

A Pensão Marreiros já não foi muito bem conhecida do colaborador deste espaço Gaspar Santos, pois quando iniciou a sua actividade há muito que não se encontrava na vila e daí não a poder abordar.

Calhou-me a mim que fui hóspede naquela pensão quase dois anos, até ao momento de me casar, tendo acabado por ficar a residir bem perto ou seja, na Rua de S. Salvador que nessa altura não tinha saída, em edifício já desaparecido.

O primeiro folheto desdobrável publicado sobre Alcoutim e o seu concelho tem lugar em Março de 1969 através de Edições Rotep, ordem de publicação 120 e por iniciativa do então Presidente da Câmara, Luís Cunha.

Acontece que nas indicações úteis, no verso, aparece como alojamento a Pensão Marreiros.

Antiga e desaparecida Pensão Marreiros. Óleo de JV

Cheguei a Alcoutim por volta das 17 : 30 h e acompanhado do Chefe da Repartição paralela, que me esperava, o primeiro caminho foi em direcção ao rio, ouvindo todas as lamúrias que me foi transmitindo. Ali é Sanlúcar do Guadiana, que eu já sabia pelas pesquisas que tinha feito, não na Internet que estava muito distante de chegar, mas nos livros que me foi possível encontrar.

O passo seguinte foi ir à pensão para saber se me podiam receber. Atenderam-me com toda a simplicidade e simpatia, mostrando-me como eram as instalações.

O edifício tinha algum aspecto pomposo e situava-se no Largo de S. Salvador, junto da Igreja Matriz sob a mesma invocação.

Foi reconstruído em lugar onde estaria em ruínas a residência paroquial. Reparar que todas as freguesias do concelho tinham habitação para o pároco e possivelmente coadjutor, a de Giões ainda funciona. Também se conhece a de Martim Longo, a de Vaqueiros e mesmo a do Pereiro que foi ainda há poucos anos destruída a sua ruína e englobada no rossio da aldeia, hoje espaço destinado à Feira de S. Marcos e aos mercados mensais.

Quanto à de Alcoutim, o povo de uma maneira geral desconhece o assunto.

Em 1874 o P. António José Madeira de Freitas (sobrinho) andava nos arranjos ou reconstrução do prédio para nele viver , já que havia vendido as suas Casas Nobres à Câmara Municipal para lá instalar os seus serviços, o que ainda hoje acontece, apesar de se encontrar numa fase de transição.

Entretanto, como tinha acabado a obra, celebra com a Câmara um contrato de arrendamento de parte do edifício para servir de escola feminina pelo grande gosto que tinha que as meninas tivessem escola, mas não ofereceu as instalações. Foi aqui que andou à escola a ti Ana Brandoa, segundo me afirmou e ficou admirada de eu saber que ali tinha sido escola. “Aqui, ninguém sabe isso!” – Disse-me.

O prédio era de 1º andar e penso que a parte superior aproveitou um desnível de terreno, já que dava acesso a um quintal em posição superior, todo lajeado e onde existia uma cisterna.

Não assisti ao derrube do imóvel pois nessa altura já não me encontrava em Alcoutim, mas penso que além de pedra (xisto e grauvaque) teria parte das paredes em taipa, como era próprio da vila e foi o uso dessa técnica que levou ao desmoronamento de várias casas aquando da Cheia Grande de 1876.

No rés-do-chão abria-se porta de duas folhas com cercadura de argamassa sendo o lintel semelhante ao que existiu e conheci nas sacadas da antiga residência do capitão-mor.A porta abria para o Largo de S. Salvador. Dava acesso a um pequeno hall onde abriam duas portas, uma para cada lado.

Do hall e ao centro partia escadaria ao gosto alentejano, com os degraus constituídos na parte exterior por madeira e interiormente por ladrilhos. Era uma escadaria típica e interessante, feita com preceito.

Um pequeno corredor, em frente, dava entrada para ampla sala com chão de mosaico moderno e que constituía a sala de jantar ao meio da qual se situava grande mesa.

Ao cimo da escadaria, do lado direito de quem sobe, existia outro corredor que dava acesso, se a memória não me falha, a três quartos, sendo um o que eu ocupei.

No lado oposto, além de um pequeno compartimento onde fui armazenando algumas coisas que ia comprando para montar a casa e que me foi cedido graciosamente, havia pelo menos mais um quarto espaçoso onde ficaram familiares meus.

À volta da casa de jantar havia várias portas que correspondiam a outras divisões que não conheci. Uma delas, do lado direito, dava acesso a outra pequena divisão que por sua vez comunicava com a grande cozinha, toda lajeada, tendo ao fundo uma grande chaminé ao gosto alentejano. Debaixo dela me sentei muitas vezes recebendo o calor do fogo antes e depois de jantar. Era da cozinha que se tinha acesso ao quintalão a que já me referi e onde existia uma pequena divisão com sanita improvisada. O banho tomava-o num alguidar de zinco no quarto onde existia um lavatório de ferro ao gosto antigo, não faltando a água no jarro de esmalte.

O quintalão tinha a circundá-lo um poial corrido.

 

Hóspedes saindo da Pensão Marreiros em 1968. Foto JV
 
Presumo que no telhado a quatro águas as telhas de canudo fossem suportadas além de paus por caniços. O meu quarto e penso que os outros, tinham como tecto pano pintado com desenhos geométricos simples.

Do piso superior davam para o largo cinco janelas iguais de arco ogival e de caixilhos de madeira envidraçados, protegidos por portas de madeira. No piso inferior as janelas de molduras simples eram rectangulares e duas, uma de cada lado da porta.

Há que referir no prédio uma platibanda sem interesse especial.

Acabei de dar a minha visão do prédio onde funcionou alguns anos, poucos, a chamada Pensão Marreiros.

Pensão Marreiros porquê? Um aljezurense desse nome casou com uma alcouteneja e já com uma certa idade fixando-se em Alcoutim onde ela sempre viveu e era natural, segundo o colaborador, Amílcar Felício, uma das mulheres de Alcoutim que eram capaz de dar volta ao mundo e era verdade, pelo pouco que ainda conheci. Mulher muito prática, que nenhum homem lhe metia medo. Tudo o que fosse duro e grosseiro era com ela e uma moura de trabalho.

Tive sempre um bom relacionamento com ela, como tive com o marido de quem se divorciou. Foi uma das primeiras utentes do lar de Alcoutim, onde faleceu.

O casal dedicava-se à criação de gado, nomeadamente, bovino leiteiro, cujo produto a empregada vendia pelos fregueses da vila, freguês que depois passei a ser. Exploravam por arrendamento algumas hortas situadas na Ribeira de Cadavais que além de lhes fornecer o pasto para os animais e produtos hortícolas, tinham pomares principalmente de citrinos que comercializavam por grosso e a retalho.

Para casa tinham uma empregada que se encarregava da gestão da mesma. Desde a confecção das refeições à limpeza da casa, tudo lhe competia e ainda vendia o leite de casa a casa, como já disse.

As refeições eram as tradicionais a que me adaptei bem, já que tive mãe e avós maternos do Alto-Alentejo. Açordas, gaspachos e migas já eram do meu conhecimento ainda que feitos de maneira bem diferente.

A pensão funcionava, naturalmente, à base de funcionários que ali eram colocados e um ou outro passante, o que acontecia raramente.

Foi ali que conheci alguns pratos regionais, como as favas guisadas com casca, as sopas de peixe muge e o jantar de grão.

Peixe nessa altura em Alcoutim só peixe do rio, sardinhas, mucharras, charros e pouco mais, trazidos pelo vendedor ambulante, então em bicicleta motorizada.

Chamava-se ao muge o 365 o que tem um significado evidente.

Ninguém vendia peixe congelado, talvez porque as pessoas não estivessem habituadas a esse tipo de consumo. Nem peixe nem carne, incluindo frango. A energia eléctrica tinha chegado há pouco tempo e as pessoas não estavam ainda habituadas à sua utilização.

Carne era de carneiro quando os dois talhantes da terra faziam abate.

Afinal, tudo isto não se passou há tanto tempo como as pessoas possam pensar.

Hoje temos residenciais, restaurantes, pousadas e hotéis! Mas há dias em que se quer jantar e não se sabe onde.