domingo, 14 de outubro de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim . Recordações - XXXVII


 
Escreve
 
Daniel Teixeira
 

 
  
AS CILHAS

Por vezes posso dar a impressão que partilho daquela ideia citadina de que os montanheiros trabalham pouco (ou quase nada, nalgumas afirmações) porque quando vamos a uma aldeia ou Monte um pouco antes da hora do almoço e logo depois desta hora os encontramos normalmente sentados nos poiais das suas casas, ou no caso também nos poiais das tabernas, isto sobretudo no Verão que é quando o pessoal se aventurava a andar por lá de carro.

Os caminhos de terra batida eram muitas vezes autênticos lagos no Inverno, a visão do estado da estrada por debaixo do lençol de água era necessária e não a havia e era frequente entre covas e pedras haver uma porradas valentes na parte de baixo do carro que mesmo blindados não chegavam para as encomendas. Ainda amolguei uma dessas chapas uma vez, mesmo indo a passo de boi e era uma chatice maior porque não havia material para as endireitar (prensas) provisoriamente e acabavam por ficar a ferir as partes interiores do material mais sensível que essas chapas tinham por função proteger.

Por isso, e não só, no meu caso, as viagens eram feitas sobretudo em período fora das chuvadas o que apanhava muitas vezes o pino do Verão e era então que encontrávamos o pessoal todo abrigado da calma, à sombra ou mesmo dormindo a sesta o que podia ter lugar em qualquer lado que não nos entortasse muito as costas. Os poiais eram o supra sumo da soneca, com largura a jeito e comprimento a gosto, com as mãos atrás da cabeça a fazer de travesseiro era uma categoria mesmo.

Bem, como já escrevi noutras crónicas o pessoal nestas alturas levantava-se extremamente cedo, por vezes faziam-se a caminho ainda de noite de forma a chegar ao alvorecer às hortas e quando se chegava lá ou pelo caminho tinha-se oportunidade de sentir e ver por vezes uma variedade grande de bicharada «exótica», desde os fugidios coelhos aos não menos assustadiços furões. Para cobras ainda era cedo mas havia por lá autênticas pitons que embora não estivessem ali senão a tratar da sua vida eram um pouco assustadoras e bem camufladas nas suas cores que quase as pisávamos.

Bem, mas era de cilhas que eu ia falar e fiz esta introdução longa porque vou escrever duas ou três linhas sobre aquilo a que eu chamava de cilhas eternas. A cilha, como sabem, serve para apertar as albardas ou as selas na zona da barriga dos animais que têm ainda a esperteza de se encher de ar antes que façamos o aperto de forma a ficarem menos apertados depois. Por vezes era uma guerra, porque cilha apertada largo pode resultar no escorregar da albarda e num tombo que naquelas terras cheias de pedras não era nada agradável ou era mesmo perigoso.

Pois bem, embora a função da tecedura estivesse por norma entregue às mulheres, eram os homens que faziam as cilhas para os seus animais. Tinham um rectângulo empinado num canto de uma casa (um mini tear vertical - tipo bastidor), com os fios devidamente alinhados e cruzados em posição de tear e um rodo manual (tudo isto tem nome próprio que não me lembro) que fazia o aperto das linhas. Passava-se a linha, dava-se umas porradas para acalcar e voltava-se a passar a linha para o outro lado e assim sucessivamente.

O processo de cruzamento das linhas (fios de linho grosso) era obtido por um paciente trabalho de colocação dos fios em duas linhas apontando para duas travessas colocadas na base e no topo do rectângulo em linha de dois que depois se fazia cruzar pelo manuseamento das barras do bastidor aparecendo estas duas linhas de cruzamento sempre na posição inversa à primeira passagem, um género de «x» multiplicado a cada passagem do cordão horizontal. Pode parecer complicado aqui escrito mas era fácil o processo, o mais chato e demorado era enfiar os fios um a um para fazer a vertical.

A minha experiência pessoal diz-me que este «assim sucessivamente» dito acima era muitas vezes no género do falar algarvio que tanta piada tem: «já agora logo amanhã»: por isso eu lhes chamava de cilhas eternas. De quando em vez o patrão da casa dava duas ou três gaitadas no tear por dia e a cilha ia-se fazendo. Só quando a cilha em utilização nas bestas começava a dar sinais de desfiamento é que o processo era acelerado, mas é preciso ver que uma cilha dura pelo menos um ano. Por isso em cada casa de entrada havia um tear destes com a respectiva cilha em execução que ali ficava o ano inteiro, que eu me lembre. e quando se acabava uma voltava-se a colocar a aparelhagem em ordem para a próxima que se começava a fazer desde logo ao mesmo ritmo.

Claro que fazer outras coisas, mantas por exemplo, que eram muito usadas as mantas de lã mas também as de retalhos, isso era trabalho de tear completo e no Monte de Alcaria Alta talvez houvessem dois ou três no máximo e ai o trabalho já não era eterno não senhor, embora historicamente a maior fazedora de «cera» no tear tenha sido a Penélope. Ao pé dela os tecelões de cilhas que conheci seriam considerados extremamente rápidos...