segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Coisas Alcoutenejas - A barca de passagem


PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 27 DE JANEIRO DE 1994 – (MAGAZINE)
 
O assunto de hoje não vai ser longo mas pensamos merecer uma abordagem ainda que já lhe tivéssemos feito uma leve referência noutra circunstância. (1)

A navegação fluvial ao longo do curso de água ou na sua travessia, desempenhou até fins do século XIX importante papel no sistema de transportes, tanto por falta de estradas como e ainda mais, de pontes.

O encargo e o benefício da travessia dos rios competia, de uma maneira geral, a autoridades locais que os arrendavam a barqueiros ou tinham estes como seus empregados.

Pela utilização da barca, pagava-se, além do serviço, um imposto que revertia a favor da entidade a quem tinha sido concedido esse privilégio. Todos estes impostos cobrados por particulares foram extintos em 1832, pelo liberalismo, permanecendo o pagamento do serviço.

São muitos os topónimos que tiveram por origem esta função, como é o caso de Ponte da Barca, vila cabeça de concelho do distrito de Viana do castelo.

Alcoutim, como povoação ribeirinha que é, teve a sua barca de passagem para Sanlúcar. É naturalmente sobre ela que nos vamos debruçar.

A referência mais antiga que conhecemos desta “barca”, é-nos dada pelo foral manuelino de 20 de Março de 1520, com capítulo próprio intitulado “BARQUA” e que reza assim:

E tem ho senhorio a barqua da dita villa de passagem pêra Castela, a saber, de vezinho da villa da hida e vinda per sua pessoa sem besta meo Real E aos de fora dous Reaes e se levarem bestas com mercadorias paga ho vezynho dous Reaaes E o estrangeiro quatro Reaes e nam se leva mais polla mercadoria Pêro se foram bastas vazias as pagarão ametade da dita contia segundo geralmente nas semelhantes barcas se manda pagar E quanto aos direitos que se na dita bar e passagem devem de pagar das mercadorias e cousas que  vam pêra castellad declaramos que sejam aquellas que soomente no dito lugar se mandam pagar de compra e vemda per este foral segundo em todallas outras partes do Regmo ho mandamos fazer E or emtrada pagarão em tudo como em tavilla.

E posto que o dito foral de tavilla aquy mandamos dar nam he nossa tenção poeremsse aquy nem levarem as cousas e direitos das alfandegas e da foz do mar por nam aver ho direito das ditas cousas neste lugar E per comsegujnte nom se deverem hy de pagar.

Alcoutim. Cais Velho e Cais Novo. 1965
Como se vê pela leitura feita são fixadas algumas regras para o funcionamento da “barca de passagem”, algumas delas que se mantiveram durante séculos, com as actualizações indispensáveis.

A nossa pesquisa só nos forneceu dados sobre a segunda metade do século XIX.

No auto de arrematação da renda da barca de passagem desta vila para Sanlúcar, para o ano de 1853/54, é referido que além das condições até à altura reguladas, o arrematante era obrigado a passar gratuitamente o médico desta vila para Sanlúcar.

Acontecia que devido a factores estranhos como as cheias e o fecho de fronteira por epidemias, os barqueiros eram impedidos temporariamente de exercer a sua actividade com os prejuízos daí inerentes.

Em 1857/58 esse facto é referido no auto pelo que seria abatido na renda qualquer tempo que os portos estivessem fechados.

No ano seguinte nova cláusula é introduzida. O barqueiro tinha de passar gratuitamente o médico no caso dele ter a sua residência em Sanlúcar.

Em 1866/67, as condições eram as seguintes:

“1ª – Deve largar do porto logo que tenha barcada completa, isto é, que haja quatro pessoas a passar ou que uma se responsabilize pelo pagamento dos quatro;

2ª – Não deve levar mais de cinco réis às pessoas da vila, dez às da freguesia e vinte aos de fora dela;

3ª – Pela passagem de cavalgaduras levará por cada uma oitenta réis, incluindo a carga e condutor; quando porém a bagagem exceda o peso de quinze quilos, levará mais cinco réis por cada quinze quilos que excedam;

4ª – É obrigado a conduzir gratuitamente qualquer ofício desta para aquela banda e bem assim a ir, seja a que hora for, a Sanlúcar, quando a necessidade o obrigue, sem que pelo seu trabalho possa exigir mais que oitenta réis;

5ª – É obrigado a passar com a água de monte quem quiser ir àquele lado, levando contudo barcagem dobrada e só poderá levar ajuste, quando a cheia monte o cais;

6ª – Finalmente, é-lhe concedido, querendo, levar aos espanhóis o mesmo que pelo barqueiro espanhol se exige dos portugueses.

Francisco Maria Xavier, o barqueiro em 1890/91, além das condições já referidas, tinha de passar gratuitamente o médico quando viesse de serviço da sua profissão, a esta vila.

Primeiro, foi o médico de Alcoutim que ficou “isento” de barcada quando fosse a Sanlucar, depois foi o médico de Alcoutim, com residência em Sanlucar (o que aconteceu várias vezes) e por fim o médico de Sanlucar quando viesse a Alcoutim em serviço da sua profissão.

Sanlúcar. Cais. Foto JV, 1986

O último auto de arrematação que conhecemos, é o do ano de 1893/94.

Sabemos que a fronteira esteve aberta até à Guerra Civil de Espanha, fechada em 1936, segundo de diz, por imposição de Franco.

Desde que conheço Alcoutim, houve sempre barca de passagem, não oficial, mas “autorizada”. Há sempre um barqueiro que merece a confiança das autoridades locais, nomeadamente fiscais e administrativas.

Para terminar, apresentamos um quadro de arrematantes da “Barca de Passagem para Sanlucar” com alguns elementos que pensamos de interesse.

 
QUADRO
ANO
NOME
VERBA EM RÉIS
1849
?
30.000
1850/51
António da Palma
9.700
1851/52
António da Palma
25.000
1852/53
António da Palma, da vila
20.020
1853/54
António da Palma, da vila
18.050
1854/55
Gaspar Peres
44.000
1855/56
Gaspar Peres
10,050
1856/57
António da Palma
30.500
1857/58
Sebastião Peres, da vila
16.000
1758/59
Sebastião Peres, da vila
12.100
1859/60
Sebastião Peres, da vila
10.000
1860/61
Sebastião Peres, da vila
10.050
1861/62,
Sebastião Peres, da vila
12.000
1862/63
Sebastião
12.100
1863/64
Sebastião Peres, da vila
14.200
1864/65
?
=
1865/66
Sebastião Peres, da vila
12.020
1866767
Sebastião Peres, da vila
12.700
1867/68
Sebastião Peres, da vila
25.000
1868/69
João Pedaço, da vila
39.500
1869/70
João Pedaço, da vila
45.000
1870/71
João Pedaço, da vila
48.000
1871/72
João Gonçalves
45.000
1872/73
João da Encarnação (seis meses porque faleceu João Gonçalves
 
1873/74
Sebastião Peres, da vila
41.000
1874/75
Sebastião Peres, da vila
50.000
1875/76
Francisco Xavier
40.500
1876/77
António Marques, da vila
55.000
1877/78
António Marques, da vila
62.000
1878/79
António Marques, da vila
24.500
1879/80
João das Neves
21.500
1880/81
António Marques
55.000
1881/82
António Marques
25500
1882/83
António Marques
18.500
1883/89
?
 
1889/90
José Joaquim, da vila
5.100
1890/91
Francisco Maria Xavier
24.100
1891/92
Francisco Maria Xavier
17.800
1892/93
José Domingos Rodrigues
24.600
1893/94
José Domingos Rodrigues
15.020

NOTA

(1)     Alcoutim, Capital do Nordeste Algarvio… 1985, pág. 29