sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Lisboa - Paris por cinco contos de réis [6]




Escreve

Amílcar Felício


Armando e Faustino saíram da pensão em Valenciennes cerca das 10 horas da manhã, agradecendo à Senhora pelo simpático acolhimento e lá partiam uma vez mais à boleia em direcção à Bélgica, praticamente do mesmo sítio do dia anterior. Mas desta vez tinham tomado a decisão de saírem a uns três ou quatro quilómetros da malfadada ponte aonde tinham sido interceptados pelos guardas belgas, para a contornarem a uma distância de segurança razoável.

Não receavam nem os preocupava atravessar aqueles campos de gelo a perder de vista, tanto mais que eram especialistas no desenrascanço em zonas desconhecidas e em sobreviver com quase nada. Vinham ainda por cima de uma duríssima e bárbara recruta, que tinha provocado inclusive várias mortes entre camaradas da Companhia numa das recentes recrutas. Na realidade a sua “especialidade” militar tinha sido precisamente “reconhecimento e informação”, um género de comandos que iam à frente batendo terreno na 2a. Guerra Mundial e que os tinha endurecido e espevitado o sentido de orientação nas zonas mais agrestes e extravagantes.

Assim apenas pelo cheiro, desviaram-se uns bons quilómetros da referida ponte/fronteira, percorrendo seguramente quase dez quilómetros por extensos campos de gelo próprios para praticantes de esqui, passando com cuidado por alguns postos de vigia sem guarda, possivelmente por as autoridades belgas julgarem impossível atravessar a fronteira naquelas condições ou talvez por já estarem desactivados, até decidirem que já tinham chegado à Bélgica quando encontraram uma estrada. E depressa veriam confirmadas as suas suspeitas.
Efectivamente quando Armando e Faustino saíram da estrada e desceram uma pequena ravina para se limparem da sujidade da travessia daqueles campos de gelo sem fim, comemorando a chegada à Bélgica com meio “Flamenguito” cada um e que era tudo o que lhes restava    um pequeno Queijo Flamengo com uns cinco centímetros de diâmetro que se fabricava na altura em Portugal  --  parava na berma da estrada junto a eles um guarda, que se fazia transportar numa velha bicicleta a pedal.
Pela farda que envergava tratava-se de um guarda belga sem qualquer dúvida, mas que era estruturalmente diferente daqueles com quem se tinham confrontado no dia anterior, pois não existia por ali qualquer pinta de raça ariana. Moreno, de estatura mediana, na casa dos 50 anos e já embarrigado possivelmente por muitos anos de cerveja, falava francês ao contrário dos outros. Era um guarda belga mas da Valónia francófona certamente, um belga valão seguramente. Pediu-lhes os documentos e naturalmente Armando e Faustino mostraram-lhe os únicos documentos que possuíam: os Bilhetes de Identidade.

 Mirou e remirou os Bilhetes de Identidade como Boi que olha para Palácio, mas ao contrário dos colegas do dia anterior não levantou qualquer problema nem lhes pediu qualquer passaporte, devolvendo-os de seguida e despedindo-se gentilmente “merci et au revoir messieures”. E lá seguiu estrada fora, assobiando no seu velho prega saltos com a sensação do dever “cumprido” certamente.

Armando e Faustino andariam ainda uns bons quilómetros até chegarem à cidade belga de Tournai. Chegados à cidade encontraram um grande café/restaurante aonde entraram. Confirmaram com o dono que o dinheiro que lhes restava, chegava para um copo de leite e pão com manteiga. Negociaram também com ele, ajuda-lo no serviço de mesa do restaurante durante os jantares e na lavagem da louça na cozinha a troco da comida e da dormida, visto já ser bastante tarde para prosseguirem viagem para Bruxelas. O dono aceitou o desafio e fecharam negócio.

Saboreavam assim a sua primeira refeição do dia e a satisfação de terem mais uma noite garantida com algum conforto, ao mesmo tempo que iam fazendo planos para o dia seguinte, quando se aproximou deles um rapaz da mesma idade perguntando-lhes em português: “já percebi que também são portugueses, com certeza que são desertores pois passam por aqui alguns. Eu também sou português e estou a estudar aqui, pois é a única cidade que possui engenharia têxtil. Vou todos os anos a Portugal e sei que aquilo por lá está mal e há muita gente a “dar o salto” e assim, se tiverem problemas posso ajuda-los!”

Encontrar um português naquele fim-do-mundo parecia-lhes a taluda da Sorte Grande, ainda por cima disposto a ajudar! Armando e Faustino agradeceram a gentileza, mas ao mesmo tempo informaram-no do compromisso que já tinham assumido com o dono do restaurante. O novo amigo retorquiu: “não se preocupem que eu costumo parar por aqui, falo com ele e resolvo o problema e vocês podem vir para minha casa, comer e dormir descansados e amanhã de manhã comem qualquer coisa antes de sair e vão à vossa vida. Têm é que ter cuidado e fechar bem a porta à saída, pois nós saímos cedo para a Universidade”!

E lá foram os 3 até à casa do novo amigo aonde viviam mais 2 ou 3 estudantes portugueses. Era a descoberta para Armando talvez do sentimento mais nobre e belo que os homens foram adquirindo desde a alvorada da humanidade e que julgava impossível existir de uma forma tão desenvolvida e concentrada no mundo do individualismo exacerbado e do desenrasca que conhecia.

Tratava-se de facto de um profundo e genuíno sentimento de solidariedade disseminado numa comunidade – possivelmente devido ao seu isolamento num mundo estranho e adverso – como Armando viria a constatar vezes sem conta e como nunca mais viria a experimentar noutros campeonatos da sua vida. Parecia-lhe que vivia num outro mundo, aonde os homens se tinham tornado pessoas!

Sairiam da casa do novo amigo a meio da manhã do dia seguinte com a precaução de deixar tudo em ordem, partindo de Tournai à boleia para Bruxelas. Chegaram a casa do contacto que possuíam em Bruxelas já ao fim da tarde, quase a horas de jantar. Era uma casa de um estudante de Cinema, que recebia na altura a visita de uma jovem irmã enfermeira para matar saudades e que trabalhava à noite como taxista para sobreviver e de um nacionalista angolano branco -- o Manel -- que era empregado de hotel.

Cidade belga de Tournai
O Manel era uma figura castiça e um homem solidário. Filho de mãe negra, cabelos ruivos e lábios grossos de africano, não recusava fora das horas de trabalho qualquer tipo de biscates que se possa imaginar desde modelo para escultores a figurante de teatro, limpeza de escritórios e tudo o mais que lhe aparecesse, para sobreviver e apoiar economicamente o movimento. Acabaria por desistir da vida já na 2ª metade dos anos setenta, possivelmente desiludido com os amigos angolanos de então e com o caminho que os diversos movimentos trilhavam.

Na realidade os compatriotas que o acompanhavam na altura eram homens com muita prosápia e calculismo. Negros, alguns deles universitários formados em Ciência Política certamente para acautelar o futuro, participariam desde logo nos Acordos de Alvor para marcar terreno possivelmente. Mudariam de “cor” como o camaleão ainda antes daqueles Acordos, adaptando-se posteriormente à carruagem do poder como uma luva, vindo a ocupar lugares de destaque no panorama político angolano. O Manel era diferente. Embora universitário também, pertencia à nata de idealistas da geração de sessenta, àqueles que queriam de facto mudar o mundo em troca de nada.

Mas aquela casa era sobretudo um local de convívio de portugueses e de angolanos que ali se juntavam para falar de Portugal e de Angola. Uma verdadeira República de Ideias aonde se juntava gente interessante com as mais variadas experiências políticas que vinha da Holanda, de Paris e até de passagem de Portugal. Era também o ponto de encontro para muitos dos milhares de portugueses residentes em Bruxelas.


Palma Inácio
De facto desde antigos amigos de Palma Inácio que iam tomando consciência da ineficácia dos processos de luta utilizados, a Fapistas autocríticos do aventureirismo em que tinham embarcado, tudo passava por ali. Mas também aparecia um ou outro Guevarista com experiência da realidade cubana que sonhavam ir para a Serra da Estrela e dezenas de desiludidos não só com as teses pacifistas do XX Congresso do PCUS como também com a política macia e os objectivos recuados do PCP, concretizada na Revolução Democrática e Nacional e no Levantamento Nacional que dava uma importância exagerada à burguesia nacional antimonopolista, democrática e militar restringindo quase exclusivamente a luta à simples queda do fascismo, em detrimento de uma liderança clara das classes populares que fosse mais a fundo, como viria a acontecer aliás e dar no que deu até chegar aonde se chegou nos nossos dias.

Alguns dos antigos amigos de Palma Inácio contavam as suas aventuras rocambolescas, tais como a fuga a pé com a GNR no seu encalço depois de uma operação fracassada, desde a Covilhã até ao Alentejo de aonde um ou outro era natural. Ou a entrada de um “Comando” em Portugal para determinada acção, em que um dos elementos com setenta e tal anos e que estava exilado há já 2 ou 3 décadas, fazia questão em participar nem que fosse em última análise para ir morrer na luta em Portugal. O “Comando” com a sua mentalidade “naíf” e bonacheirona não conseguiria resistir a tão sentido e nobre apelo e aceitaria a sua participação. Simplesmente não contavam com a bronquite que o Senhor tinha e que às 2 ou 3 da manhã no silêncio da noite com aquele seu ruuuhhh....ruuuhhh....ruuuhhh! sinalizaria a sua presença à distância, colocando em risco a própria missão!

Armando e Faustino mal tinham chegado ao seu porto de abrigo de Bruxelas, já o Manel convidava Armando para ir ao Supermercado comprar um frango para o jantar, para começar a aprender a mexer-se na cidade. Durante o jantar falaram dos seus “planos suecos”, mas combinaram que teriam que ficar por ali uma ou duas semanas para carregar baterias e ganhar algum dinheiro para os outros 2000 quilómetros que ainda faltavam palmilhar, pois estavam precisamente a meio caminho do objectivo. “Fiquem o tempo que quiserem” disseram-lhe os donos da casa, pondo-os completamente à vontade.

Os frequentadores da casa começariam a aparecer pouco depois, pois a notícia de novos recém-chegados espalhava-se depressa. Uns vinham para conversar um pouco e saber novidades outros até para jantar, o que era uma prática normal. Os angolanos estavam mais interessados em conhecer eventuais novas estratégias militares e como era vista a situação angolana, do ponto de vista do inimigo. Da parte dos portugueses era a curiosidade em saber e trocar notícias sobre Portugal que lhes interessava, pois a saudade saltava-lhes dos olhos de quase todos, uma vez que andavam por ali há já alguns anos. Naturalmente que a cavaqueira se prolongaria pela noite dentro. Todos se prontificariam amavelmente a ajudar os novos “residentes”.

Bruxelas

Quanto a trabalho informaram não ser difícil arranjar trabalho de imediato e até poderiam começar a trabalhar já a partir do dia seguinte, pois bastava ir à Universidade de Bruxelas que existia lá um departamento que tinha sempre uma lista considerável de trabalhos para os estudantes que precisassem. Por outro lado, se porventura decidissem ficar em Bruxelas, ficariam desde já a saber que só o poderiam fazer como refugiados da ONU como todos eles aliás, pois a emigração portuguesa estava proibida há já alguns anos, visto que a Bélgica já tinha ultrapassado o défice em homens que a 2ª Guerra Mundial lhe tinha causado.

Dos presentes era o Mário quem tinha maior disponibilidade para os acompanhar à Universidade no dia seguinte. Armando e Faustino começavam a simpatizar com aquela gente e estavam a gostar das primeiras impressões e daquele ambiente. Parecia-lhes gente interessante que não tinham deitado a toalha ao chão e que davam um sentido positivo à vida. E por ali ficaram no seu porto de abrigo de Bruxelas, dormindo com algum conforto mais uma noite descansados e preparando-se para começar a trabalhar no dia seguinte.

(CONTINUA)