terça-feira, 21 de agosto de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XXXIV





Escreve

Daniel Teixeira 




A NOSSA PISCINA

Falar em piscina em Alcaria Alta, pelo menos na altura em que andei por lá jovem ou criança, seria introduzir um neologismo no vocabulário local e depois do que vou escrever em seguida seguramente ainda hoje será considerado exagerado o termo.

Numa primeira vista, esclareça-se, porque piscina advém de peixes e muito pouco tem a ver com o actual sentido que lhe é dado maioritariamente. Por isso eu dizer que tínhamos uma piscina (várias, até) em Alcaria Alta não é totalmente um absurdo: não davam, na sua grande parte, para nadar (salvo alguns pegos mais resistentes à seca do verão já na Ribeira da Foupana ou mesmo no Ribeirão) mas até os poucos que sabiam nadar, nós, os da cidade, não tínhamos assim uma tão grande apetência para a braçada.

Habituados à água salgada, mais «pesada» como dizíamos, era uma trabalheira enorme para nos mantermos à tona da água doce (levezinha) pelo que utilizando a sempre presente em qualquer idade lei do menor esforço ficávamos pelo «molho» a meia altura com mergulhos só da cabeça para alisar o penteado. Aliás ainda bem que não nos lembrámos de andar a saltar das rochas porque os fundos eram bastante irregulares e surpreendentes.

Mas a nossa piscina, a piscina do dia a dia era um poço numa horta: dava-nos a água aí pelos ombros, sensivelmente, era extraordinariamente límpida antes da primeira entrada e descíamos e subíamos com a força dos braços. Juntávamo-nos três e quatro num espaço que acabava por se tornar exíguo e tínhamos direito a banho de lama de borla ao fim de dois minutos de termos entrado.

Poço do monte. Foto JV
Estava este poço situado numa horta que ficava a seguir ao poço de baixo numa zona ainda sem denominação específica que me lembre mas que ficava próximo das Almargens : era só descer mais vinte metros e estávamos lá, na zona das Almargens que ficava perto do Almarginho, este seguramente com este nome diminuído por relação de proximidade e de semelhança e continuidade.

Numa direcção oposta e distante, já no caminho que fazíamos a butes para Martinlongo fora da estrada porque era mais muito mais curto o percurso, e virado para o outro lado do Monte e a uma distância dali onde estávamos de pelo menos um quilómetro ficava o Almarjão, onde cultivávamos uma horta.

Nunca percebi muito bem a lógica destas denominações mas que não era sempre por relação de proximidade me parece ser certo: talvez fosse pela forma, pela localização em dado tipo de terreno, pelo contorno que os cursos de água davam às hortas, pelo desenho que a erosão das elevações ia plantando no sopé dos montes: deveria saber mais sobre isto e estudar um pouco estas coisas, é um facto.

Havia um sítio que era merecidamente chamado da «Areia fina», logo à saída do Monte, porque, por estranho que nos parecesse a areia era mesmo fina, quase tipo praia: já teria havido ali um curso de água com dimensão grande mas já não havia na altura e há centenas de anos provavelmente: nunca ninguém, me falou em ter visto água ali a não ser a das enxurradas do Inverno que desciam do bairro do Além.

O processo do nosso banho perto das Almargens era demorado mesmo: bastava meia hora de banho para termos quinze minutos de segunda lavagem a balde num outro poço e enxaguamento ao sol. Desincrustar a areia, a lama e toda a sujeira natural que os bordos do poço iam debitando e que se colavam sobretudo na parte mais visível, que era o cabelo, era a segunda fase obrigatória no processo.

Poço tipo regional. Foto JV

Mas era bom, fazia calor de rachar e tudo o que abrandasse a sensação de estarmos a torrar era bem aceite. Os montanheiros adultos não tomavam de facto muitos banhos porque não tinham as possibilidades que nós crianças tínhamos. Aproveitávamos a hora de caçar (quase nada sempre) neste poço de baixo, hora esta que era mais farta de possibilidades na força do calor aproveitando a altura em que os pássaros iam beber nas pequenas poças de água que se formavam à volta do poço.

De esclarecer que era o poço das bestas e que resto de balde não bebido por um animal tinha de se deitar fora...e deitava-se logo ali, para voltar a ser filtrado pelo terreno e regressar donde tinha vindo, pelo menos assim se pensava. A sapiência dos povos é grande : uma besta, seja ela asinina, muar ou cavalar, não bebe água já tocada pelos lábios (beiços) de um outro pelo que não dá para dar o resto a outro e voltar a jogá-la para dentro do poço também não dava, porque mesmo sendo um poço na altura exclusivamente para animais, nunca se sabe o dia de amanhã.

Quando me lembro destas coisas, e regressando agora às nossas piscinas, sei perfeitamente que era uma grande porcaria e que o poço só mantinha a água limpa se lá não entrássemos: logo uma coisa implicava outra; tomar banho (para nos limparmos por definição) implicava que nos sujássemos mas nada impedia aquela agradável sensação de frescura em plena força do verão.

Estas pequenas coisas, desaparecidas agora, são coisas e tempos que não voltam mesmo mais. Qualquer criança agora não fará nada disto, nem sequer se aconselha que o faça e nem terá condições para fazer o mesmo. Isso é que torna também as coisas de hoje por vezes tão urgentes e tão prementes e tão necessárias para serem usadas ou feitas mesmo: muitas das coisas que fazemos ou não fazemos hoje podemos nunca mais vir a fazê-las o que faz com que cada um de nós tenha condições e momentos que são mesmo únicos no sentido mais absoluto do termo. Não sabemos exactamente quais, é um facto e nunca saberemos o último segundo de cada coisa.

E descontando esta parte desagradável da areia e do barro no corpo e no cabelo quantos de nós sentimos alguma vez ao tomar hoje um seguramente mais higiénico duche que provavelmente estaremos numa época de viragem e que talvez não amanhã mas um dia destes aparecerá outra coisa qualquer que faça com que esse nosso actual prazer de sentir correr a água pelo corpo seja daqui a muitos anos objecto de saudosa recordação tal como eu fiz agora?

Daí a aceitação neste plano, mas só neste plano e nos aspectos com ele relacionados dentro dos mesmos princípios lógicos, da frase de Virgílio na Eneida, carpe diem quam minimum credula postero, «aproveita o dia, confiando o mínimo possível no futuro». O mínimo possível do futuro não é todo o futuro, como é claro, é só o mínimo...