domingo, 17 de junho de 2012

Lisboa - Paris por cinco contos de réis [4]




Escreve


Amílcar Felício 



Eram 3 horas da manhã.

Truz...truz... truz..., alguém batia bruscamente à porta do casebre. Armando, Faustino e os novos companheiros de viagem acordavam meio estremunhados e com algum nervosismo à mistura provocado pelo batuque, mas nem o barulho de uma pena se ouvia dentro daquele casebre bolorento! Apesar do sobressalto, calculavam que certamente seria a “rapariga” que os iria conduzir na travessia da fronteira como tinha sido combinado com o passador e leva-los até à primeira aldeia espanhola, para apanharem a camioneta para Ourense que partia às 6 horas da manhã. Espreitaram cautelosamente por uma fresta da porta.


Depois de desfeitas as dúvidas mas ainda antes de abrir a porta, perguntaram “quem é (?)” não fosse o Diabo tecê-las.

“Vá lá despachem-se, que ainda temos muito que palmilhar (!)”, responde uma voz feminina. Não havia qualquer dúvida de que era ela. Puseram-se em pé rapidamente, tiraram uma ou outra ramela que mal tinha tido tempo de se formar naquelas 2 ou 3 horas de sono e ficaram desde logo aperaltados e a rigor, prontos para a viagem, pois tinham dormido vestidos e a pouca “bagagem” nem sequer tinha saído do saco de plástico.

“Bom Dia (!)” disseram eles mal abriram a porta. “Bom Dia” responde a “rapariga” ao mesmo tempo que disparava apressada mais uma vez: “Vamos lá a despachar-nos que não temos muito tempo e se encontrarmos os Carabineiros pelo caminho, a gente não se conhece ouviram! Vocês têm que dizer que vão trabalhar para Ourense aonde já têm trabalho e como eu ia à aldeia, pediram-me se podiam ir comigo para apanhar a camioneta pois não conheciam o caminho”. E assim num ápice punha o rabinho de fora de qualquer responsabilidade...

 Já em marcha acelerada Armando aproximou-se discretamente da “rapariga” e perguntou-lhe: “conhece a nossa situação?”. “Eu cá não sei de nada, têm é que dizer se eles aparecerem, que a gente não se conhece e como vão trabalhar para Ourense pediram-me se podiam ir comigo até à aldeia para apanhar a camioneta”. Armando ainda insistiu mais uma vez, mas era como chover no molhado pois recebia sempre a mesma resposta “a gente não se conhece já lhe disse e vocês vão trabalhar para Ourense...” Não havia mais nada a fazer senão “pontapé para a frente e fé em Deus”, pelo menos para aqueles que acreditassem nos seus serviços.

Cidade de Ourense
 E lá seguiram entre rochedos, ribeiros e barrancos escarpados que mais pareciam os Caminhos do Inferno. Cai aqui levanta-te ali, lá se iam amparando como se fossem uma família unida por anos e anos de vida comum, mas que afinal o destino tinha juntado havia apenas algumas horas atrás e cujas passadas por aqueles caminhos escalavrados, iam destruindo uma solidão compacta e aterradora de dezenas de anos. Eram velhos trilhos de contrabandistas adormecidos, desactivados há décadas e que como um livro em branco e inócuo guardariam certamente, muito sofrimento, medo miudinho e aventuras dolorosas naquele seu silêncio impenetrável mas que levavam Armando a recordar, tantas e tantas estórias que tinham animado e extasiado os serões da sua infância.

Não encontrariam ninguém àquela hora da madrugada e assim chegaram à aldeia ao fim de quase 3 horas por caminhos tortuosos, que nem lembraria ao Diabo percorre-los. Fizeram a entrada na aldeia como se fossem actores de um filme de bandidos no Faroeste. A “rapariga” à frente a correr em ziguezague de esquina em esquina e os outros atrás dela em bichinha de pirilau à moda da tropa, lá se iam internando na povoação até avistarem finalmente o largo da aldeia aonde já se via a camioneta e algumas pessoas em redor. Misturaram-se com o povo na sua ânsia de passarem despercebidos e de não darem nas vistas. A “rapariga” levaria sumiço pouco depois desaparecendo para sempre, possivelmente depois de ter falado com o cobrador.
Eis que chega um Carabineiro, colocando-se atrás da pequena multidão e provocando naturalmente algum mal estar entre Armando e os companheiros. Quando Armando punha o pé no primeiro degrau da camioneta para subir, ouve alguém gritar: “mira usted, llega aqui hombre!”. Armando olha para trás e vê o Carabineiro com o dedo apontado na sua direcção e lá vai com o rabinho entre as pernas ao pé dele já com a cabeça a pensar em espanhol “porqué yo me cago en Diós (?)” aparentando uma calma que na realidade não existia.“Qué pasa hombre” pergunta-lhe Armando tomando a iniciativa para mostrar alguma tranquilidade e puxando do mais fundo das entranhas pelo seu melhor espanhol “coño”. “Entonces y para donde vás mira?” pergunta-lhe o Carabineiro ao que ele responde: “pués mira, voy a trabajar para Ourense y hasta ya tengo trabajo hostia” . “Entonces sigue y que tengas suerte!” retorquiu o Carabineiro. “Gracias Señor” responde-lhe Armando subindo sorrateiro para a camioneta.

 O Carabineiro entraria também para a camioneta indo colocar-se estrategicamente atrás de Armando e Faustino o que não lhes dava nenhuma tranquilidade. Mas tratava-se de pura coincidência de viagem, pois nada de mal viria a acontecer ficando por esclarecer para sempre, se também ele pertenceria à organização e aquele “voy a trabajar para Ourense” não seria afinal a senha da passagem para a liberdade!

Mal a camioneta se pôs em marcha a Senhora que a eles se tinha juntado na noite anterior, parecia outra mulher mais solta e descontraída transpirando uma liberdade no olhar e nas palavras, que ainda não se lhe tinha visto. Com o seu instinto maternal perguntava insistente e descontraidamente para Armando “não querem também um bocadinho de pão com chouriço (?), vá comam lá que já devem estar com fome”! Armando arrepiado abanava a cabeça que não, pois falar português naquele contexto era dar muito nas vistas, ainda por cima com o Carabineiro mesmo ali atrás dele e sabia-se lá quem mais andaria por ali... Mas a Senhora não desistia da oferta: “vá comam lá, que já devem estar com fome...” Aí Armando lá agarrou na bucha para acabar o diálogo o mais rapidamente possível, mas o que tinha mesmo era ganas de lhe apertar o pipo para ver se o raio da mulher se calava de vez.

Mas a viagem correria paulatinamente. O cobrador na sua azáfama habitual lá ia de passageiro em passageiro fazendo o seu serviço de cobrança rotineira. Quando passava por Armando e pelos companheiros de viagem parecia que nem os via e nem lhes dirigiu uma palavra sequer. Este compadrio e conivência descarada transmitia uma enorme confiança a Armando, que começava a sentir-se seguro no meio daquela organização invisível. Pensava para os seus botões: “mas como é possível gerar uma engrenagem destas tão certinha e desta dimensão internacional à luz do dia nas barbas de toda a gente e que nem ele próprio percebia muito bem os contornos? Caramba quando um povo quer, ninguém o consegue vergar!”

E lá chegaram ao terminal de camionagem em Ourense sem qualquer incidente de percurso. Mal saíram da camioneta alguém se lhes dirigiu dando-lhes uma trouxa a cada um com umas sandes e informando-os de que a camioneta para Paris sairia dali às 17 horas certas. E por ali continuaram fumando uns cigarros e fazendo horas não fosse haver alguma alteração de percurso, pois sabiam que haveria sempre por ali algum Anjo da Guarda qualquer que olhava por eles e que os informaria de uma eventual mudança.

Sem atrasos de maior às 17 horas Armando e Faustino entravam para a camioneta e estavam de partida para o seu último percurso da viagem. Era uma camioneta cheia de portugueses e espanhóis, gente que ia à procura de uma vida melhor certamente e que quer Portugal quer Espanha não conseguiam proporcionar-lhes. Confraternizariam pelo caminho durante toda a viagem, bebendo e comendo solidariamente até chegarem à fronteira com a França.

Chegados à fronteira com a França pararam, recebendo ordens do condutor para ninguém sair dos seus lugares pois ele ia tratar dos papéis com os franceses. Armando e Faustino desconheciam completamente de que papéis se tratavam, pois não lhes tinha sido pedido nenhuma documentação que aliás não tinham, exceptuando o Bilhete de Identidade, mas aguardaram serenamente. Pouco depois o condutor lá voltaria novamente dizendo que tudo estava ordem e que iam seguir viagem. E assim aconteceu. Por terras de França lá iam palmilhando pela calada da noite quilómetros e mais quilómetros direitos a Paris.
Paris
Chegariam a Paris ao princípio da noite seguinte. Armando tinha uma imagem idílica e livresca da Cidade Luz talvez porque a cultura francesa fosse dominante na altura mas afinal, tudo lhe pareceria normal à chegada. Até os abutres de que se ouvia falar, especializados em aproveitar-se das fraquezas dos próprios compatriotas que procuravam a sorte por terras de França, por ali andavam aos magotes à caça dos incautos. “Já tens trabalho (?), já tens aonde ficar e dormir (?), vá lá que eu posso “ajudar-te” (!)” tudo servia para fazer negócio e aproveitar-se dos que fugiam à miséria salazarista. Armando e Faustino desenrascavam-se bem e lá iam de abutre em abutre dizendo que já tinham tudo programado, que não precisavam de “ajuda”.

Despediram-se calorosamente dos companheiros de viagem que com as trouxas às costas e as malas de cartão cheias de esperança para ali se deslocavam em busca de uma vida com dignidade. Estava-lhes destinado para a maior parte deles certamente, mendigar trabalho de obra em obra e habitar um qualquer bairro de lata superlotado dos arredores de Paris. Armando e Faustino sentiam uma profunda frustração e revolta ao mesmo tempo, por ver aqueles que tudo produzem, sujeitos a tanta humilhação de tarecos às costas e entregues a todos os despotismos a que os mais fracos ficam sempre sujeitos.

Mas a vida tinha que continuar e lá foram calcorreando de rua em rua às apalpadelas à procura de uma pensão rasca, pois os tostões na algibeira eram escassos. De pensão em pensão lá foram andando até encontrarem uma, cujo preço lhes pareceu ajustado aos tostões que tinham no bolso e que tinham que fazer esticar. A primeira coisa que fizeram foi tomar banho e até se sentiam uns Senhores depois do dito. Há muito que não se sentiam tão confortados, tão descontraídos na vida e de bem com a sua consciência.

Com quase nada na algibeira e outro tanto na carteira, nem ninguém de quem se socorrer para fazer frente à vida no dia seguinte, Armando sentia em vez de uma natural insegurança, uma estranha sensação de liberdade como nunca tinha sentido até então. Sentia-se como uma andorinha à solta sem amarras de qualquer espécie e até lhe parecia que o mundo era todo seu.

Já na cama da pensão e na verdura dos seus vinte e poucos anos Armando perguntava para os seus botões: “será afinal por causa das ‘coisas’ e do poder que elas dão que os homens não se entendem, acabando alguns por ser escravos das próprias ‘coisas’ e até de si próprios e outros obrigados a emigrar, apenas para ganhar o pão nosso de cada dia? E se as ‘coisas’fossem de todos e não fossem de ninguém ao mesmo tempo, como é que seria”? No meio destas dúvidas e perguntas e exausto depois de três dias intensos, caiu que nem uma pedra numa cama que lhe parecia francamente de Rei, dormindo que nem um Anjo o seu merecido sono dos justos!

(CONTINUA)