quarta-feira, 14 de março de 2012

Vida no campo quando no campo havia vida




Um conto de

José Temudo


[Quadro de Charles Emile Jacques]
1

A "estorieta" que vou contar-vos é velha de mais de setenta anos. Tomei conhecimento dela, de forma indirecta, através de pessoa de família, que a ouvira a alguém que, por sua vez, a tinha ouvido a..............e por aí fora. E, por isso, não garanto que a "estorieta" se tenha passado realmente tal como a vou contar." Quem conta um conto....", e eu próprio não estarei isento de cair na tentação de lhe "acrescentar um ponto."

2

Uma qualquer história, e também esta "estorieta", passa-se num tempo e num lugar, tem protagonistas e uma acção.

Já situei a época em que decorreu esta muito breve "estorieta", entre meados dos anos trinta e meados dos anos quarenta do século passado. Portugal era, então, um País essencialmente agrícola, pouco alfabetizado, muito religioso e também muito atrasado relativamente aos países europeus mais desenvolvidos. O interior do País, designadamente as aldeias, viviam no século ou nos séculos anteriores, como se o tempo, isto é, o progresso lhes tivesse passado ao lado.

As aldeias, em vez de estradas, tinham maus caminhos, só transitáveis a pé, a cavalo ou por carros e carroças puxados por cavalgaduras ou por bois; desconheciam a energia eléctrica e as suas aplicações domésticas; não dispunham de água canalizada, embora desfrutassem de água boa brotada de nascentes; os aldeãos não tinham livros, não liam jornais, e o mais certo é que nem sequer tivessem ouvido falar de rádios. Apenas conheciam a Bíblia e as suas histórias pela leitura que o snr Reitor delas fazia mostrando os caminhos " para viver com alegria e morrer com esperança."

Alimentavam-se, quase exclusivamente, com o que a terra dava, depois de trabalhada arduamente, e com a carne do porco que matavam no Inverno e que, depois de salgado e defumado, ia dando para o consumo do ano inteiro; em caso de doença ou em dia de festa, matavam uma galinha da sua própria criação.

Os mais afortunados, uma pequena minoria, tinham uma ou duas vacas para os trabalhos agrícolas, um pequeno rebanho de ovelhas ou de cabras, e um cavalo ou um macho ou um burro para transporte pessoal.

Era da venda dos borregos, dos cabritos e dos vitelos, do leite e dos queijos por eles produzidos que aforravam algum dinheiro que lhes servia para pagamento das contribuições, para comprar roupa e calçado, para pagamento de jornais ou salários e para guardar algum no colchão, para o que desse ou viesse. Para eles, os bancos não contavam, nem para pedir dinheiro emprestado, nem para depositar as economias. Eles lá tinham as suas razões!

Os menos afortunados constituíam a maioria da população rural. Eram proprietários de pequenas parcelas de terreno, eram rendeiros de propriedades pertencentes a algum senhor da Vila ou da Cidade. Viviam acima da linha de pobreza, segundo os padrões da época, mas, para isso, trabalhavam "como moiros", de sol a sol.

No fim da escala social, havia um outro grupo de aldeãos que, de seu, só possuíam a força de trabalho e o casebre onde habitavam. Viviam ou como jornaleiros, ganhando jorna a jorna, e nem sempre havia trabalho, ou prestando serviço permanente aos mais abastados, como criados ou como pastores.

3

Tendo já falado do tempo e do espaço, falarei agora dos protagonistas e da acção.

Maria e José eram dois adolescentes, sensivelmente da mesma idade, ambos nascidos em casebres, ambos filhos da má fortuna. Teriam quinze ou dezasseis anos, ao tempo em que decorreu esta "estorieta". Ela, já uma mulherzinha, de corpo grácil; ele, de boa estatura física, com buço visível, mas sem qualquer pelo de barba a despontar na cara. Tinham nascido em aldeias vizinhas e tinham frequentado a escola da freguesia, donde saíram mal tinham aprendido a ler, a escrever e a contar, para irem servir como pastores ao serviço de lavradores abastados. Com a saída de casa, era menos uma boca à mesa, sempre carenciada.

A partir daí, passaram a encontrar-se, guardando os rebanhos, nos terrenos baldios usufruídos em regime comunitário pelos lavradores das duas aldeias. E, assim, foram crescendo, saudáveis e de bem com a vida. A comida e a roupa eram encargo dos patrões e o resto........fosse o que Deus quisesse! Ele aprendera a tocar flauta que um pastor mais velho, lhe fizera e o ensinara a tocar. Ela gostava de o ouvir tocar e, por vezes, acompanhava-o, cantarolando, que, para isso, tinha jeito e gosto.

Naturalmente, ao longo dos anos, foram nascendo e crescendo neles sentimentos de grande afectividade e de uma cada vez maior intimidade. Também, no decurso desse tempo, foram reparando na alternância das estações, na renovação cíclica dos pastos, na luta violenta entre os machos na disputa das fêmeas com cio, no nascimento das crias, no seu crescimento e como se tornavam machos e fêmeas adultos, tudo se repetindo, num ciclo que parecia não ter fim.

4

Era um dia de Primavera luminoso e quente. Os terrenos do baldio mostravam-se bem cobertos de erva verdejante e de arbustos cheios de flores. As ovelhas, pastando, moviam-se tranquilas, vagarosamente. A Maria e o José, juntos, acompanhavam esse movimento, calado. Foi ela que quebrou o silêncio:

" Ao passarmos por aquela moita, tu não vais derrubar-me..........vais, Zé?"

" Não, respondeu ele, sem convicção. Tu ias gritar....não ias, Maria? ", vacilou ele, entre o receio e a esperança.

" Deste cá com uma gritadeira! replicou ela, de modo zombeteiro. E, sem mais, conversa, tomou-lhe a mão, levando-o em direcção à moita. Para ser mais preciso, para o lado escondido da moita

5

Saindo de um leve e agradável entorpecimento dos sentidos e de uma não menos leve sonolência, foram tomando consciência de modo gradual, das badaladas dos sinos da Igreja, muito distantes, muito diluídas, muito suaves, muito doces, que penetraram neles como um bálsamo, como música celestial. E, de novo, se abraçaram, amando-se, carinhosamente.

6

Creio (eu sou um pouco dado à fantasia), que a música que a Maria e o Zé ouviram mais não foi do que um hino de exaltação ou a sagração do seu amor jovem, simples e tão natural, como tudo o que eles observavam à sua volta, na Mãe Natureza.

FIM