sábado, 17 de março de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XXIII




Escreve


Daniel Teixeira




VOLUNTARISMO E IMPOSIÇÃO

Alcaria Alta era e sempre foi uma grande terra, um grande Monte que conseguia conciliar uma população relativamente alta (na proporção) com alguma tranquilidade e muito poucos conflitos.
Havia sempre, como em todos os lados, penso, pessoas que tinham uma noção não muito exacta sobre aquilo que era conviver por lá visto na perspectiva ética cimentado nos costumes mais antigos e por vezes outras tinham alguma escassez de ética quase natural que não tinha nada a ver com conflitos de interpretação geracional mas sim com a tal falta de chá em pequenino.

Os poucos conflitos que conheço sendo de quase somenos importância têm sobretudo a ver com relações de vizinhança mal digeridas o que por vezes tinha também a ver com a difusa demarcação de territórios. De uma forma geral, e conheço isso por razões profissionais, os maiores destruidores da unidade familiar alargada, na minha modesta opinião - é claro - são os divórcios e as heranças.

Deixemos a sociedade moderna e o espartilhamento relacional que a habitação empilhada e o distanciamento métrico favorece, muitas vezes como desculpa, mesmo, teremos de reconhecer, metendo neste caso eu mesmo a mão na minha poluída consciência neste aspecto.

Ora e feita esta minha mea culpa e entendendo que os divórcios não eram abundantes no meu tempo de criança e jovem no campo, resta-nos as heranças que normalmente são discutidas ao milímetro quadrado em qualquer parte do mundo. De facto era aborrecido - penso eu que seja lógico pensar-se - que um longínquo sobrinho cuja existência até se desconhecia venha a obter parte numa coisa para cuja construção e ou consolidação e ou manutenção nunca mexeu uma palha.

E esses rumorejares aconteciam, ficavam, deixavam as pessoas indispostas, por vezes repetitivamente revoltadas, enfim...penso que seja fácil entender: já é mais difícil ter de ouvir bater sempre na mesma pedra, isso sim..., ser naturalmente simpático e ouvir, e ouvir, e ouvir e não ter coragem de dizer que já vamos na audição do centésimo relato.

[Acesso ao monte. Escola há muito desactivada. Foto JV]

Contudo alguns dos mais fortes embates tiveram lugar após o 25 de Abril não propriamente por razões políticas mas dada a relativa e inesperada liberdade que houve dificuldade em gerir. Um mundo novo parece ter-se aberto e qual artesões confrontados repentinamente com novas tecnologias o pessoal acabou por se ver um bocado à nora.

O voluntarismo institucional, máquinas do exército para arranjar caminhos, por exemplo, foi bem aceite e neste caso cabe perguntar (esta minha curiosidade intelectual ainda me vai «matar» um dia) cabe perguntar, dizia eu, se neste composto voluntário institucional não terá contado para a imediata aceitação o facto de haver neste composto também alguma imposição implícita.

Na verdade e pelos recontos que obtive tudo foi feito «pela tropa», «foram eles que arranjaram», «chegaram aqui um dia com as máquinas e em três dias endireitaram aquele caminho todo», etc. etc. - a tal de democrática consulta popular talvez fosse um processo demasiado lento para a urgência militar, neste caso, pelo que o facto consumado acabou por funcionar. Não vi mas calculo que os mirones das obras fossem todos os habitantes disponíveis no Monte. No entanto o voluntarismo local não teve a mesma sorte daí que eu me tenha lembrado de falar atrás do factor impositivo.

Por exemplo, o Rossio de Alcaria Alta, que era um descampado que começava em termos métricos a seguir á Escola Primária para quem entra no Monte pelo lado de cima e se estendia quase em redondo até à taberna da Ti Inácia contornando para a esquerda junto às pocilgas da minha «avó» Assunção (e depois também as do Chico Artur) que ficavam junto à Portela de Santa Justa, subindo depois um pouco no sentido contrário até onde agora está (penso eu) um poço com roda de puxar, tinha um afundamento ligeiro no terreno sensivelmente a meio do seu circulo, afundamento esse que ia desaguar quando chovia junto ao poço já na entrada da zona da Valdégua, que até tinha agora as rochas arrumadas e calcadas pela tropa.

Ora o Ti Zé Luís, um agricultor comerciante e vice-versa, que fornecia linhas, agulhas, elásticos e material do género mesmo em sua casa e que de quando em vez fazia surtidas pelos montes com o macho aparelhado e encaixado nas laterais à comerciante era tido como sendo simpatizante comunista.

Ora, por aquilo que me apercebi em Alcaria Alta para algumas pessoas bastava ter barba comprida para se ser apelidado de comunista. Eu safava-me com a minha barbicha a meio caminho e talvez porque fosse «bom moço demais» para ser isso...não sei. Acho também porque lá eu nunca cresci e que mesmo de barbas, casado e depois pai de filhas ainda me viam de calções curtinhos e botas cardadas chutando as pedras.

Bem, o Ti Zé Luís tinha «contra» si pelo menos um factor: tinha trabalhado ao que me constou na Mina de S. Domingos e de lá «saíam todos comunizados». Até um tio indirecto meu que era das Velhas e que também tinha andado a penar debaixo de terra «era comunista», mas neste acertavam eles sem saber porque embora não percebesse nada de política o PC ou coligações tinham nele um voto certo.

[Antigo poço do monte. Foto JV]

Pois, o certo ou errado «comuna» do Monte resolveu um dia fazer uma coisa que até tinha bastante jeito que era uma vala de escoamento a meio do Rossio, que no Inverno tinha de ser contornado na sua enchente. O homem meteu o seu trabalho, meteu o seu macho a puxar o arado, teve o trabalho de escavar em complemento sem ajuda de ninguém (e sem mirones, pelos vistos) e acabou por levar um arraso verdadeiramente desmotivador de qualquer exercício cívico.

A minha prima queixou-se que tinha de ir deitar a minha Tia Zabelinha e tinha de atravessar o Rossio à noite e que podia partir uma perna, outros queixaram-se por causa dos animais que tinham de contornar a vala e a hipótese de fazer pontões ou meter manilhas de cobertura para passagens estava fora de causa (financeira e técnica).

Breve...parece que o estou a ver de mãos na cintura a olhar o trabalho completado com aquele olhar de satisfação próprio de quem acaba de cultivar um mortiço baldio ao mesmo tempo que o vejo irritado com a críticas.

Houve mais outra operação de voluntariado deste tipo realizada já por um grupo local de cinco ou seis homens mas essa acabou por ser levada no gozo. Eles diziam que tinham feito uma estrada de Alcaria Alta até Santa Justa, cabendo a este lado a ida até ao ribeirão e ao lado de Santa Justa o caminho inverso até ao Ribeirão na sua margem: quando chegaram quase ao fim viram que os dois caminhos (chamados de estrada) não encaixavam por uma centena de metros: um foi muito para a esquerda e/ou o outro foi muito para a direita pelo que vá de fazer uma curva de emergência.

Acontece que eu tive oportunidade de percorrer essa «estrada» anos depois e para além das pedras a bordejar o «traçado» fiquei com a sensação de que o conceito de estrada se tinha ficado por aí...para mim terá ficado o gesto e o voluntarismo.