domingo, 4 de março de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XXII




Escreve


Daniel Teixeira




PÃO NOSSO DE CADA DIA

Em Alcaria Alta e penso que nos Montes todos pelo menos do Concelho havia uma largo consumo de pão. Hoje em dia com as manutenções de linhas estreitas de senhoras e senhores, os controles de colesterol e algumas doenças que requerem consumos reduzidos de gorduras e hidratos de carbono, o montanheiro típico, de raiz, não se safava mesmo.

Não me lembro exactamente quantos fornos haviam no Monte mas eram muitos na sua relação com a população sendo alguns deles semi-privados: na Portelinha, por exemplo, morava uma só família, todos meus primos e tios avós, com todas as suas ramificações e tinham um forno que era praticamente deles: no Além, por aquilo que me lembro (ia lá pouco) havia três; na Praça havia dois: a minha Tia Bia que morava na Praça tinha um forno no quintal o que faz três pelo menos. No Castelo havia dois mais dois (privados estes últimos). Enfim, em média talvez houvesse um forno por três / quatro famílias o que fazia com que estivessem inactivos muito tempo, mesmo os mais utilizados.

Os pastores, por exemplo, talvez os maiores consumidores de pão na proporção da sua alimentação total, mesmo os não assalariados, chegavam ao Monte, carregavam dois ou três pães, uma mão cheia larga de azeitonas, um naco de presunto, por vezes algum tomate rijo mas para consumo rápido, algum grão e partiam de novo tratar das ovelhas presas durante esse tempo em curral. Por isso havia muitos currais aparentemente abandonados mas que serviam de pouso temporário para estas ocasiões.

Não raras vezes ia-se levar um «jantar» e abastecimento de pão ao pastor quando se tinha conhecimento de que ele andava por ali (ali quer dizer a uns cinco, seis quilómetros de terra a bater) com o gado. Mas isso era uma vez ou duas por acaso.

Sempre me perguntei como conseguia aquela gente viver durante um mês ou dois, dependendo, apenas de pão, azeitonas e presunto. Claro que sempre contei com algum gamanço inofensivo nas hortas mas também achava que só poderiam ser frutos de consumo rápido também e que não implicassem cozinha mais elaborada. Fazer um jantar do grão seco que levavam por uso provavelmente centenário implicava proximidade ou acesso a água limpa, colocar de molho uma noite e depois cozer, como é claro.

[Pão caseiro acabado de cozer. Foto JV]

Por achar estranho essa capacidade de sobrevivência não estranhava já que um semi - patrão de uma prima minha (nunca percebi muito bem aquela relação) fosse aquilo a que se chama uma frieira a comer quando lhe calhava poder comer em casa da minha prima, nos seus intervalos rápidos.

Aquele homem, pequenininho, rebentava com uma panelada de couve e grão ou feijão em grande velocidade.
Tinha no entanto um problema relativamente grave ele: pastoreando ovelhas suas e de um outro sócio no rebanho, ovelhas marcadas com tinta no dorso, só as ovelhas do sócio tinham problemas graves ao ponto de morrerem ou terem de ser abatidas lá pelos montes. Os «acidentes» das ovelhas do sócio sucederam-se três ou quatro vezes até que um dos filhos deste resolveu dar-lhe uns «miraculosos» sopapos que acabaram de vez com a maldição que pesava sobre as ovelhas do pai.

Mas este é um caso esporádico, mesmo, não me constam mais histórias destas, e esta dos sopapos teve lugar num oportuno e sigiloso encurralamento perto do pocilgo da minha avó: achei estranho que na pacatez do Monte houvesse daquilo mas depois do Z.V. me explicar as razões da sessão de boxe sem resposta que eu surpreendi sem querer acabei por entender e calar. Ficou só entre os dois e meio (eu não morava lá pelo que me conto pela metade): o Ti G. terá acidentalmente caído mal e os orgulhos de todos ficaram preservados e a sociedade no pastoreio acabou por ser desfeita dois anos mais tarde.

[Velho forno desactivado em Alcaria Alta. Foto JV]

Não foi este episódio isolado que eu conheci nem sequer o facto de os pastores terem uma alimentação tão parca que me levou a deixar de pensar ser a vida de pastor uma vida quase ideal. Sem ninguém a chatear, ainda me vejo, eu, as minhas ovelhas (mesmo que não fossem minhas) os cães e a imensidão dos montes para andar. Era até capaz de arranjar uma flauta de cana para entreter os ouvidos, sei lá...e ganhar assim o meu pão cada dia.