sábado, 25 de fevereiro de 2012

Recordação da Casa da Esperança




Escreve

José Temudo




INTRODUÇÃO
É singular a relação que mantenho com as minhas recordações; decididamente, não sou eu que as procuro, são elas que vêm ter comigo, depois de despertas e arrancadas ao mundo misterioso em que permanecem esquecidas, por um qualquer evento do meu dia-a-dia, por mais insignificante que seja.

Foi o que aconteceu, há dias, quando passeava, como é meu hábito, na avenida junto ao mar. Ao passar por uma mulher que caminhava em sentido contrário ao meu, cruzei os meus olhos com os dela, por um brevíssimo instante.
Mas foi quanto bastou para trazer de volta à minha vida um pequenino episódio ocorrido há algumas anos atrás, que passo a contar-vos, sob o título



AQUELA POBRE MULHER, DE ROUPÃO AZUL

Passei o dia em que fui internado no hospital, alternadamente, entre a enfermaria, onde fui sendo preparado para a operação a que ia ser submetido no dia seguinte, e a sala de convívio, onde procurei, com algum sucesso, lendo jornais e vendo televisão, afastar de mim a natural preocupação que se experimenta numa situação destas.

Depois do jantar, que para mim não foi além de uma chávena de chá, servida na sala de convívio, fiquei assistindo, atentamente, como é meu hábito, ao noticiário das oito, num dos canais da TV.

Em dado momento, quando estava a ser transmitida uma notícia que se revestia de pouco interesse para mim, a minha atenção foi perturbada e desviada por um persistente sussurro. A meu lado, mas um pouco afastadas de mim, três senhoras falavam entre si. Uma delas, já entrada nos anos, de aspecto fino e voz educada, falava, com doçura mas de forma veemente, para uma outra, vestida com um roupão azul:

- Porquê esse desânimo, essa tristeza? Não lhe disse o srn. dr que ia correr tudo bem?
- “Pois disse”, respondeu de modo brando, a do roupão azul, mulher do povo, dos seus quare3nta anos. E acrescentou, como que a desculpar-se:
- “É que eu tenho um pressentimento, um pressentimento ruim, aqui”, disse ela, colocando a mão sobre o coração. “Sinto que vou morrer.”
- “Ora, ora”, retrucou a senhora fina. “Deixe-se disso. Medos e pressentimentos ruins, todos nós temos antes de uma operação. Nisso, somos todos iguais. Isso é que é natural. Mas vai ver que tudo vai correr bem. Vamos, anime-se. Lembre-se dos seus filhos e do seu marido.”

-“É por eles que eu tenho medo, não é por mim”, disse a mulher do roupão azul. Vi, então que ela chorava. Havia lágrimas no seu rosto sem cor, de aspecto doentio. Era um choro que se via, contido e tranquilo, e que só se ouvia na tremura da voz com que interrogava:

-“Que vai ser deles, senhora, se o mais velho ainda agora fez dez anos?
O pai não pode olhar por eles, que a vida dele é só trabalhar, de manhã à noite, para que nada lhes falte. Então, perguntava ela, levantando os olhos tristes das mãos cruzadas sobre o regaço, quem vai cuidar deles?”

- “Vai ser a senhora, como sempre tem feito até agora”, respondeu a senhora fina. Depois, dando-lhe um lenço para que limpasse as lágrimas, continuou:

- “Com a graça de Deus, tudo vai correr bem. E, daqui a alguns dias, quando estiver de novo em casa, junto dos seus meninos, ainda se vai rir dos medos que agora tanto a estão a atormentar.”

Estas eram boas e sensatas palavras, mas aquela pobre mulher parecia não as ter ouvido. O desânimo e a tristeza continuavam estampados no seu rosto lívido. O seu pressentimento era tão forte que não consentia que a mais insignificante réstia de esperança penetrasse na sua atormentada alma e iluminasse, por um segundo que fosse, o seu triste rosto.

Eu próprio, que tinha entrado no hospital determinado e resolvido a sujeitar-me à operação para acabar com o mal que me afligia e tirava o sossego, comecei a ficar inquieto e a lembrar-me de casos recentes em que os pacientes tinham ficado nas mãos dos anestesistas. Felizmente para mim, uma jovem enfermeira entrou na sala e pediu-me que a acompanhasse à enfermaria para fazer não sei já o quê. Nessa noite, já não tornei à sala de convívio. Os meus intestinos, estimulados por um purgante, não me davam descanso. Às seis da manhã do dia seguinte, acordaram-me, lavaram-me, desinfectaram-me e levaram-me para a sala de operações. Depois, no seguimento de uma breve conversa com a anestesista, apaguei-me, sem sequer ter tido consciência de ter sido anestesiado. Umas horas depois, abri os olhos. Alguém a meu lado, não sei se médico, se enfermeira, levemente inclinada sobre mim, procurava tranquilizar-me:

- “Pronto sr. José, já acordou. A operação correu bem. Está tudo bem consigo. Agora, vai ser levado para a enfermaria.”

Não dei conta. Afundei-me, novamente, num sono profundo, absoluto, quase mortal. Voltei à “superfície”, já na enfermaria, horas mais tarde, sentindo que chamavam por mim. A custo, fui abrindo os olhos e, mais custosamente ainda, fui tomando consciência do sítio onde me encontrava e do que me tinha acontecido. Enquanto isto, alguém, de pé, aos meus pés da cama, falava para mim, de um modo brando, a raiar a ternura:

- “Então, como se sente?”

Foi só então que tive uma imagem clara da minha interlocutora. Era aquela pobre mulher, de roupão azul, que, umas horas antes, na noite anterior, eu vira na sala de convívio, com a alma amarfanhada por um pressentimento ruim a seu próprio respeito. E era ela, tão merecedora da minha compaixão uma horas atrás, que ali estava a confortar-me com a sua presença e as suas palavras. Confesso que a sua presença ali, mais do que qualquer outra, por ser de todo tão inesperada, me comoveu muito. Quis agradecer-lhe a visita, mas não consegui articular uma só palavra que fosse, tão pedrado ainda estava pela acção da anestesia. O mais que consegui fazer foi um expressivo gesto com uma das mãos. Parecendo não ter sido efectada pelo meu silêncio, ela continuou:
- “A senhora enfermeira disse-me que a operação tinha corrido bem. O que eu lhe desejo é que possa voltar para junto dos seus o mais depressa possível”.

Durante uns segundos, ficou olhando para mim, sorrindo – um sorriso pouco iluminado, sobre um fundo toldado pela tristeza. Depois, como eu continuasse calado, despediu-se:
- “Bem, o melhor agora é eu ir-me embora. O senhor precisa é de descanso. Então, boa tarde.” Ao sair já à porta, virou-se para mim, sorrindo; vi que me disse qualquer coisa, mas já não entendi o quê, o sono tinha tomado conta de mim novamente.



Não tornou a aparecer, o que não me surpreendeu. Ela própria estava para ser operada. Com toda a probabilidade, a operação teria já ocorrido. Três ou quatro dias depois, logo que os médicos me autorizaram a sair da cama e me recomendaram que andasse, fui procurá-la. Não queria ir-me embora sem lhe manifestar a minha simpatia e expressar-lhe a minha gratidão pela visita que me fizera e que tanto me sensibilizara. Percorri as enfermarias de uma ponta a outra do corredor e não a encontrei. Falei dela às enfermeiras que me tratavam que nada me souberam dizer sobre a mulher do roupão azul – este era a única referência que tinha dela. No dia em que tive alta, na secretaria do hospital onde fui chamado para o cumprimento de uma qualquer formalidade, perguntei por ela, pela última vez. Nada me disseram, porque nada sabiam sobre a mulher do roupão azul. Era como se ela nunca tivesse passado por ali. Não quis acreditar no que me diziam. E a suspeita instalou-se insidiosamente, em mim:”terá batido certo o pressentimento ruim de que a mulher falava? Será que estão a esconder a sua morte para evitar que os outros doentes entrem em pânico?” Saí da secretaria intranquilo e , de certo modo, perturbado com aquele mistério. Porém, ainda não tinha cruzado a porta de saída do hospital e já uma outra suspeita me atormentava: “ E se ninguém me está a mentir? E se a mulher do roupão azul já mais existiu e tudo não passou de um sonho vivido dentro de um pesado sono provocado pela anestesia? Como vou eu saber, agora?”

Já em casa, no decurso de uma refeição, ainda falei na mulher do roupão azul. Como era de esperar, ouviram-me com atenção, mas a emoção com que eu contei o pequeno episódio não contagiou ninguém. E não se falou mais dele. Com a passagem dos anos, eu próprio o esqueci.

Antes de colocar o ponto final nesta tão pequenina “estória”, vou antecipar a resposta à pergunta que necessariamente me irão fazer:” mas que relação há entre a mulher com quem te cruzaste quando passeavas à beira mar e a mulher do roupão azul?”

Honestamente, respondo: ao certo, não sei; talvez, a mesma sombra de tristeza no olhar, ou a mesma palidez nas faces, ou, ainda, o mesmo ar sereno, quase grave, do seu rosto; ou, sei lá, qualquer outra coisa. Sei, apenas, que naquele dia, eu passeava à beira mar, que cruzei os meus olhos com os de uma mulher que passeava em sentido contrário ao meu, e que, de repente, vivi de novo tudo o que vos acabo de contar.