segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Cadernos eleitorais da freguesia de Alcoutim - Anos 40 e 50




Escreve


Gaspar Santos




(*) Nestes anos, os cadernos eleitorais da freguesia de Alcoutim, eram “preparados” no celeiro e a versão final era batida por mim na velha máquina Remington lá existente.

Eram cadernos de dois tipos: Um servia para as eleições do Presidente da República e dos Deputados à Assembleia Nacional; outro, listava os chefes de família, que elegiam os membros da Junta de Freguesia.

Os cérebros desse trabalho eram Justo António Marques, regedor da freguesia, Leopoldo Vicente Martins, secretário da Junta de Freguesia e um outro elemento da mesma.

Todos estes homens tinham um percurso de vida que nada devia à União Nacional (UN). Mas por terem sido eleitos em lista única da UN para esses cargos políticos, ou nomeados como era o caso do regedor, defendiam quanto podiam a situação política. Penso que, com apenas a honra e a vaidade de pertencerem à “situação” e sem qualquer remuneração.

As reuniões faziam-se em torno da mesa grande existente no lado direito à entrada do celeiro, no lado oposto àquele onde existia o escritório de madeira.

[Antigo Celeiro de Alcoutim. Foto JV]

Quando reuniam, a equipa já tinha recebido notas de várias entidades. Do Registo Civil com os óbitos verificados no intervalo entre a última actualização e esta. Das várias entidades que tinham funcionários públicos a residir na freguesia de Alcoutim, dando nota dos seus funcionários que tinham direito a votar (as mulheres apenas as licenciadas). Da Repartição de Finanças com os contribuintes com direito a voto por terem rendimento colectável acima de determinado valor. Ou um requerimento, o que era raro, de particular que desejava ter o seu nome inscrito como eleitor.

O Senhor Leopoldo tinha na mão o caderno eleitoral anterior com os nomes por ordem alfabética, que ia ser actualizado por intercalação de novos eleitores ou por supressão de eleitores antigos. Mas esta equipa, ao fazer esta actualização, tinha em conta critérios que por vezes nada tinham a ver com a democracia.

Sobre cada nome lido, existente no velho caderno ou a inscrever de novo, ponderavam se era afecto ao regime vigente ou não. Se não era afecto ao regime, pura e simplesmente não seria inscrito. Havia porém excepções: se era eleitor da oposição mas tinha peso político era tolerada a inscrição, pois daria muito nas vistas e daria origem a possíveis reclamações sérias que qualquer dos homens desta equipa não tinha coragem pessoal para afrontar.

Era assim que eles não se atreviam a cortar dos cadernos qualquer membro da família Rosário, mesmo sendo público e notório que eles eram todos, nesse tempo, afectos confessos ao antigo Partido Republicano Português. Mas não inscreveriam qualquer uma outra pessoa que não fosse afecto ao regime e não tivesse peso político e reivindicativo ou que tivesse faltado a eleições anteriores, daquelas em que era só para dizer amem.

Assim, interiormente, em silêncio e com os meus botões, muito me diverti durante aquelas reuniões, com ditos como: “Fulano. Não vota em nós. Não se inscreve nos cadernos!”;“Este não votou na última eleição. Não é de confiança. Não se inscreve! “; “Beltrano é amigo de J que é amigo do Rosário. Não se inscreve!” ; Ou então, “é da oposição mas é perigoso excluí-lo. Vamos inscrevê-lo!”. E por aí adiante até à feitura dos ditos cadernos eleitorais.

No entanto, sobre aquilo que ali se passava, embora eu fosse um adolescente, tive sempre o cuidado de guardar a maior reserva.

Foi assim que desta forma tão pragmática, comecei a fazer a minha formação cívica e democrática, sem simpatia por tais critérios eleitorais. E até penso hoje, que as ditaduras não se eternizam mais no poder, para além de umas dezenas de anos, exactamente porque não conseguem aumentar os seus aderentes nas camadas mais jovens quando estas se dão conta de tais critérios.


(*) Retirado com a devida vénia de htpp://smeira.blog-prev.terra.com.br