sábado, 10 de dezembro de 2011

As ribeiradas e a pesca ao remolhão





Escreve


Amílcar Felício



Às vezes apanhavam-nos desprevenidos, pois apareciam mesmo sem serem esperadas e muito menos desejadas!

“Olhem que veio a Ribeira pessoal, mas que grande Ribeirada!” era assim que a notícia se ia espalhando pela Vila e cada um tomava as previdências que achava mais convenientes. Mas a maior parte das vezes já contávamos com elas, tais eram as chuvadas que as antecediam e que anunciavam com toda a probabilidade que elas vinham a caminho.

As Ribeiradas não atingiam naturalmente a imponência das Grandes Cheias do Guadiana como já temos referido nas nossas crónicas e que paralisavam quase completamente a Vila, fazendo-nos sentir a nossa pequenez e impotência humana perante aquele mar de água, pois nunca saíam de um modo geral do leito da Ribeira aonde corriam, ao contrário das Grandes Cheias que alguns anos passavam alegremente pela Taberna do Ti Sabino e chegavam até quase às portas da Câmara, ameaçando invadir a própria Praça sem pedir licença a ninguém.

[Alcoutenejo com barrancada. Foto JV, 2008]

Mas também constituíam um acontecimento que marcava o dia-a-dia alcoutenejo. E aquele gargarejar ronco e continuado, naquele silêncio sepulcral das noites geladas de Inverno era ensurdecedor! Rugidos dos confins dos tempos, sons eternos que nos acompanharão para toda a vida e que povoarão para sempre as profundezas da nossa memória... Parecia um fantasma furibundo a chegar à Vila sempre a roncar!

Alcoutim sempre que tal acontecia, ficava isolado de uma parte significativa dos Montes que lhe davam vida no dia-a-dia, nomeadamente das Cortes Pereiras e da Afonso Vicente e naturalmente das terras aonde muitos alcoutenejos labutavam como as várzeas do Rossio ou as da Lourinhã, pois não havia qualquer meio de comunicação que permitisse a passagem de um para o outro lado que não fossem as passadeiras da Fonte Primeira e as das Cortes Pereiras.

E quantas preocupações que aquelas Ribeiradas causavam a tanta gente!
“O que é que teria acontecido ao meu Justo, será que ele já terá atravessado as passadeiras das Cortes! Ai pessoal quem me acode!” Era o lamento e a aflição constante da Tia Ana Costa, quando elas chegavam pela tardinha. E lá ía muitas das vezes a vizinhança à procura do Ti Justo, não tivesse acontecido alguma desgraça. Felizmente nunca houve nada...

O Ti Justo era o carteiro de serviço que levava a correspondência para os Montes, fundamentalmente para as Cortes Pereira e para a Afonso Vicente. Todos os dias sem falhar, lá ia e vinha aquela alminha a pé com as tradicionais sacas das cartas ao ombro e ala que se faz tarde! Foi uma vida inteira a calcorrear entre Alcoutim e as Cortes Pereiras pelo antigo e único Caminho que ligava Alcoutim às Cortes e que as estevas e os “charougaços” a esta hora já terão engolido provavelmente, apagando para sempre pegadas e pegadas de um vaivém de gente e de burros, que animavam aquele deserto em que se transformou nos nossos dias.

[Ribeira de Cadavais. Pego Fundo. Foto JV, 2008]

Mas ainda há poucos anos por ali vi umas quantas passadeiras espalhadas pela ribeira abaixo, despojos da eterna e interminável guerra entre o homem e a natureza, mas que esta acaba quase sempre por vencer.

Abandonadas, contemplei-as em silencio, velhas testemunhas desprezadas mas reais que viram e serviram gerações e gerações de alcoutenejos e assistiram impávidas e serenas, ao calcorrear de gentes e de burros num tempo que hoje nos parece quase medieval, mas que fez parte dos tempos áureos de um Alcoutim que já não existe.

Foi por ali que a minha mãe veio a pé ainda criança, numa certa manhã do ano de 1928 ou de 1929 com cinco ou seis anitos apenas, tomando conta da irmã mais nova a Rita, quando os meus avós decidiram trocar o Monte dos Currais nas Cortes Pereiras por Alcoutim. Dois pirralhos “arrancadas pela raiz como o rosmaninho” como diria o poeta José Temudo, duas cotovias silvestres atarantadas sem saber para aonde iam entregues a si próprias, a caminho de um mundo sem estevas nem “charougaços” e que os adultos diziam que era melhor. Desculpem lá esta pieguice, mas ficou-me sempre por isso um certo fascínio por aquele Caminho das Cortes, pois acabaria por fazer parte da minha pequena história. Tive também a oportunidade de o percorrer a pé em 1951 ou 1952 com cinco ou seis anos de idade, para uma “matança de porco” em casa dos meus tios nos Currais, que nunca mais esqueceria...

A Tia Ana tinha uma maneira de estar na vida serena e de bem com toda a gente e um humor muito próprio que desculpabilizava sempre o seu Justo. Às vezes lá ia desabafando com a vizinhança: “o meu Justo vai sempre sozinho de manhã para as Cortes, mas à noite vem quase sempre acompanhado aquele malandro!”. E na realidade vinha. Era raro o dia em que o Ti Justo não viesse com um copinho a mais!

À distância de 50 ou 100 metros já a Tia Ana sabia que o caldo vinha entornado, o que não era difícil de perceber: “oh Justo mas tu hoje não vens bom, filho!”. Era desta forma carinhosa e maternal que a Tia Ana se dirigia ao encontro do Ti Justo. E lá punha ela os pés a caminho para ajudar o seu Justo a chegar a casa nos últimos metros da caminhada, amparando-o e fazendo-lhe na sua simplicidade sempre o mesmo reparo: “óh filho, mas tu pareces que bebes sempre para o mesmo lado!”, pois quando vinha com um grãozinho na asa o Ti Justo vinha sempre inclinado sem exagero para um dos lados para aí a uns 70 graus e a uns 110 graus para o outro. Era impressionante como ele conseguia andar assim!

[Ribeira de Cadavaia. Pego das Portas. JV, 2010]

Mas as Ribeiradas também tinham o seu lado lúdico e eram um acontecimento que agitava Alcoutim na minha juventude. Aproveitando as águas “ludras” da Ribeira, era a altura de pescarmos “iróses ao ramolhão” como nós dizíamos. E sabem como se construía o remolhão? Íamos às “minhocas de inverno” que se apanhavam nas melhores terras das hortas, grossas para aí com um dedo mindinho de grossura e com mais de um palmo de comprimento. Apanhávamo-las às dezenas e depois com um fio fazíamos uma enfiada delas de mais de 1 metro de comprido. Enrolávamo-las depois em círculo para aí com uns quinze ou vinte centímetros de diâmetro. Estava feito o remolhão.

Depois era só ata-lo com uns 2 ou 3 metros de fio a uma cana e era o suficiente para que as “iróses” como se dizia, abocanhassem o referido remolhão e assim que as sentíamos estrebuchar, era só puxa-las para terra pois elas desprendiam-se automaticamente. Foi a arte de pesca mais simples que conheci, sem anzóis nem qualquer tipo de artimanhas que pudessem prender as enguias.

Claro que a Ribeirada trazia na sua enxurrada tudo o que crescia nos pegos como peixes de diversas espécies, cobras de água, sapos e rãs etc., mas eram apenas as enguias que caíam nesta esparrela. Escolhíamos depois os recantos da Ribeira aonde as águas se acalmavam e a bicharada se acoitava para fugir às correntes tumultuosas que as arrastavam sem destino. O poiso principal era no Pego Fundo, no local onde a Ribeira muda de direcção e aonde as águas descansavam do seu agitado percurso.

Estou para aqui a explicar como se “apanhavam” as enguias ao remolhão e com tudo isto já é quase meio-dia! Digam lá que não ia um ensopadozinho nos Guerreiros do Rio à moda antiga em cima de uma boa fatia de pão caseiro torrado, com hortelã-da-ribeira e todos aqueles condimentos que o Guerreiro tinha “herdado” da sogra? Até já me está a crescer água na boca!

Há uns anos atrás fiquei estupefacto quando encontrei naquele “fim do mundo”, um amigo de Lisboa sem qualquer tipo de ligação ao Algarve, mas que na altura era professor/investigador na Universidade de Faro ligado à Biologia Marinha. Estava com um grupo de seis ou oito colegas. Tinham ido à aventura até aos Guerreiros imaginem, porque tinham ouvido falar no ensopado! Que pena o Guerreiro ter acabado com o Restaurante...




BOAS FESTAS E UM 2012 NA MEDIDA DO POSSÍVEL
PARA TODOS OS ALCOUTENEJOS E LEITORES DO A.L.!!!