quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Recordando João Ricardo





Escreve


Gaspar Santos




[Aos 80 anos. Foto JV]

Lembro-me vagamente da vinda para Alcoutim de mestre João Madeira Ricardo no final dos anos 30 do século passado. Era de Cachopo, Tavira e a mulher D. Maria Veríssimo, de Salir, Loulé. Já nascera o filho Manuel João. O Eleutério e a Maria dos Anjos são alcoutenejos. Foram todos meus amigos de infância.

Sendo barbeiro, instalou-se e, em breve, tinha uma numerosa clientela. Salvo erro, havia então dois barbeiros: mestre Carolino Morais e outro cujo nome não recordo, que não tinham os cuidados higiénicos e a competência que João Madeira revelava. Mas nesse tempo os ganhos de um barbeiro numa terra como Alcoutim davam à justa para a alimentação e renda de casa. Assisti muitas vezes sua mulher vir buscar à gaveta dinheiro para uns ovos para fazer o almoço.

No seu ofício não se limitou a tratar dos cabelos dos homens. Cortou muitas vezes o cabelo a mulheres. As alcoutenejas são muito exigentes com o seu tratamento dos cabelos. Apesar de precisarem mais vezes de tratar do cabelo do que os homens, nunca ajudaram a que se fixasse uma cabeleireira em Alcoutim, nem uma pessoa de Alcoutim quis abraçar tal profissão. No âmbito da sua profissão também colaborou com o Dr. Dias na preparação e limpeza do campo cirúrgico de alguns doentes.

[Rua escorregadiça]

João Madeira residiu na Rua 1º de Maio e mais tarde na Rua das Flores mesmo em frente dos meus pais com quem sempre teve muito boa vizinhança.

Era bom conversador, tinha como passatempos pesca à linha e leitura. Lia para audiência colectiva folhetins de jornais ou grandes romances com aventuras do Rocambole, Guerra e Paz e autores como Albino Forjaz de Sampaio. A assistência, com destaque para o António do Vinagre aplaudia efusivamente algumas passagens.

Também a execução musical era sua diversão no início da sua vinda para Alcoutim.
Anos depois abrilhantou muitos bailes com a música que executava e nos divertia muito. As noites de sábado ou Domingo na esplanada do cais ficaram-nos na memória como momentos muito agradáveis. Constituía para nós uma boa “orquestra” a sua execução em clarinete, emprestado pelo Sr. Silva e que pertencera à Banda de Música de Alcoutim, ou mais tarde, em saxofone que ele comprou, acompanhado em bateria pelo Lázaro Martins ou pelo cunhado deste conhecido por Manuel “Arrana”.

A sua música veio substituir as duas alternativas que tínhamos anteriormente. Acordeonista, que saía caro dada a sua vinda de longe; ou música com instrumentos de cordas, que executantes locais cada vez em menor número não queriam sacrificar a sua diversão de bailadores.

Ele e os filhos eram quem em Alcoutim tinha competência e atrevimento para subir a um palco, quando os artistas em espectáculo solicitavam a colaboração de um elemento do público para uma cena de ilusionismo ou outra.

Durante muitos anos tomou conta do bar da sede da Sociedade Recreativa Alcoutinense. Ainda hoje recordo o sabor muito agradável do café que ele confeccionava e servia, sobretudo em noites de baile, quando a execução musical ainda não estava a seu cargo.
Era um cultor da música como amador. Penso que poderia ter ido muito mais longe como profissional (executante de clarinete, clarinete requinta e saxofone, instrumentos de escala igual.). Ele tinha formação musical adquirida numa banda de musica, penso que de Salir e também uma boa cultura do folclore algarvio.

Poesia foi também uma manifestação da sua arte mas que, modestamente ou por não sentir interlocutores que o compreendessem, ele não divulgou, excepto as cantigas que também compôs para o Rancho Folclórico de Alcoutim. Como excepção, revelou essa veia de poeta ao nosso amigo comum José Varzeano a quem mostrou vários poemas e que os publicou.

Em trabalhos de bricolage ele tinha habilidade e assim fazia muitas molduras em madeira que ornamentavam a barbearia, embora de gosto não muito apreciado. Nessa sua habilidade não podemos esquecer os belos arranjos dos mastros dos Santos Populares, em torno dos quais se dançava.

[Mastro]
O mastro, um pau com 5, 6 ou mais metros revestido de ramos de arbustos aromáticos como murta, rosmaninho e alecrim, era encimado por uma coroa de cana revestida de papel de seda de cores variadas a que chamávamos charola. Esta parte mais difícil e criativa era o João Madeira quem preparava com as suas preciosas mãos.

Criou o Rancho Folclórico de Alcoutim no início dos anos 50 que suspendeu poucos meses depois, para vir a recomeçar em 1955 e ainda outra vez mais tarde. Ele era o animador, o ensaiador, o criador dos poemas, das músicas, o apresentador, o executante no saxofone da música que acompanhava o rancho e,.. quando o baile era mandado ele era o mandador. Ali teve também a colaboração do filho mais novo e da filha como bailadores.

Um homem com tantos talentos tinha por outro lado sempre o mesmo dinheiro, pouco. Sentiria que merecia mais e, na nossa opinião merecia. Tentou assim uma ida para África, que se ouvia dizer no fim dos anos 50 ser terra de oportunidades. Foi para Moçambique, penso que com a ajuda do senhor Luís Cunha. Aqui a sorte não lhe sorriu. Quando já se encontrava desanimado, uma unidade de marinha que lá estava em missão encontrou-o no mato vestiu-lhe um camuflado e durante algum tempo colaborou com a nossa tropa fazendo-lhe a comida. Foi com cotização destes militares que ele arranjou dinheiro para regressar.

No regresso deu continuidade à sua actividade como barbeiro. Como bom conversador e contador de estórias e optimista como era, dizia de África muitas peripécias felizes que não correspondiam completamente ao que constava da sua permanência em Moçambique.

Naqueles tempos como hoje, tem para mim qualquer coisa de mágico o fenómeno musical, seja obter sons melodiosos de um instrumento, seja a composição entendida como a organização imaginada ou experimentada dos sons ou notas, bem como a sua tradução gráfica. É verdade que a física nos diz que os sons das notas são vibrações de certa frequência, mas mesmo assim e por isso, admirava e continuo a admirar o João Ricardo mais como músico nestas duas vertentes de compositor e de executante do que como barbeiro.

[Rancho de Alcoutim]

Já depois da sua morte e sabendo que no seu espólio deixara em papel algumas das músicas que foram cantadas e dançadas por nós no Rancho de Alcoutim, pedi autorização à viúva para tirar cópias. Já consegui que as executassem para cassete mas para o ritmo de marcha ficaram muito lentas e por isso incapazes. Não desisti de lhe prestar a homenagem da sua publicação na internet, se possível associadas às vozes das nossas cantadeiras.

Aqui fica o meu depoimento sobre um homem com quem privei e de quem fui amigo e a quem Alcoutim muito deve culturalmente.