sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A janela onde eu "espreitava" o mundo...





Escreve


Amílcar Felício



Corriam pachorrentamente no doce aconchego alcoutenejo os anos de 1950, 1951 ou 1952, mais coisa menos coisa. Na melhor das hipóteses, talvez existissem naqueles tempos meia dúzia de rádios em toda a Vila, que ligavam uns quantos alcoutenejos ao mundo. Também aparecia um ou outro jornal que algum alcoutenejo mais curioso recebia pelo correio ou que se destinava à Sociedade, como o Século se não me falha a memória e cujos folhetins/romances eram cuidadosamente recortados pelo Primo Antunes, já nos meados da década de cinquenta e colados carinhosamente em forma de livro, recheando a pequena Biblioteca do Clube que fazia as delícias de muitos alcoutenejos. Mas mesmo assim e apesar de tão pouco quem diria, que seria a idade mais bonita da nossa inocência! Ia nos meus 4, 5 ou 6 anos de idade...

[António Joaquim, o avô do autor]
Jantava à pressa e às vezes até me engasgava para ser dos primeiros a chegar à Venda do meu avô que era paredes meias com a Mercearia, ficando a cozinha ao fundo do corredor virada para o imponente Cerro da Mina (tudo nos parece grande quando somos pequenos!) e para a verdejante Boca da Ribeira. As únicas casas existentes na outra margem da Ribeira era a velha Igreja em ruínas e a casa do Rossio do Ti Gato numa pequena elevação, que mais parecia um posto avançado que defendia e vigiava a Vila dia e noite. O único acesso por terra era feito pelas passadeiras existentes na altura – as históricas Passadeiras da Fonte Primeira -- no local aonde foi construído o actual pontão junto à Praia do Pego Fundo.

Nos anos das grandes cheias do Guadiana, a casa do Ti Gato assemelhava-se a um barco à deriva naquele imenso mar de água. Ainda cheguei a andar de lancha bem lá perto da casa e entre as toscas balizas do velho Campo de Futebol da Fonte Primeira imagine-se!
Apesar dos prejuízos que causavam, nada daquele macabro espectáculo hoje em dia poderá voltar a ser visto, pois “caparam” o nosso Guadiana roubando-lhe a rebeldia invernosa que se apoderava dele antigamente.

[Cheia do Guadiana em 1976. Ao fundo o rossio. Foto JV]

Em Alcoutim só havia Vendas naquela época. Mais tarde é que começaram a “aparecer” as ditas Tabernas. Eram estabelecimentos em que o negócio era exclusivamente à base de bebidas como vinhos, aguardentes, cerveja, um ou outro pirolito e capilés, tabacos, mas também vendiam brilhantina (quem é que ainda se lembra disto?) e petróleo ao litro para os candeeiros e fogões, com uma maquineta que se aplicava no bidão e que bombeava manualmente quantidades até 1 litro. Nos dias em que um ou outro queria confraternizar com alguns amigos levava de casa o petisco, a maior parte das vezes um naco de pão e uma fatia de toucinho ou na melhor das hipóteses umas sardinhitas estivadas, uma ou duas cavalas que se vendiam a granel ou uma latinha de conserva. Azeites, vinagres, lixívias etc., já eram considerados produtos de mercearia. Para o azeite, o sistema de bombagem do bidão era o mesmo que se usava no petróleo. Ainda não existia a ASAE felizmente e até as colheres de pau eram permitidas...

Era de facto dos primeiros a chegar à Taberna do meu avô depois do jantar. Depois vinham eles um a um e lá se iam acomodando nos bancos corridos da Taberna à medida que iam chegando. Invariavelmente pediam sempre a mesma coisa, pois a escolha também era reduzida: “Óh Ti António Joquim dê-me lá aí um copo de três tinto se faz favor!”. E logo começava o falatório. “Então vocês querem lá ver o que me aconteceu hoje...” e por ali iam desfeando um rosário de palavras e de estórias ora uns ora outros, que nunca mais acabava. Sentava-me no meio deles, de olhos arregalados e ouvidos sempre à escuta, para não perder pitada do que eles iam falando e às vezes até me faltava a respiração quando as aventuras eram mais radicais. Parecia um gravador...

Tinham chegado do campo há menos de 2 horas e arrumado os burros, as mulas, as éguas ou os machos no palheiro ou na arramada. Havia até quem amalhasse os rebanhos no Castelo que fazia de curral e de matadouro naquela época. E agora já jantados e um pouco refeitos do trabalho do dia, juntavam-se aos magotes ali na Taberna para recuperar um pouco as energias para o dia seguinte e matar o tempo até à hora “da deita” entre dois dedos de conversa, um copo de três de vinho de garrafão Abel Pereira da Fonseca e umas fumaças de cigarro de Onça Duque ou de Três Vintes (20x20x20) que enrolavam com mestria à mão, passando a língua no final ao correr da mortalha para acabar o cigarro.

[Isqueiro tipo espanhol]
Acendiam-no depois ou com um fósforo ou com um isqueiro espanhol, que era composto por uma torcida embebida salvo erro em gasolina na ponta e que às vezes tinha quase meio metro. Puxavam-na ligeiramente para cima com um pequeno arame preso a uma pequena esfera até à altura da pedra na qual friccionavam uma pequena roda metálica dentada, que produzia uma faísca provocando a incandescência da torcida. Depois de acenderem o cigarro, puxavam-na novamente para baixo e ela apagava-se naturalmente por falta de oxigénio, pois a esfera adaptava-se perfeitamente à medida do tubo. Eram raros os que fumavam cigarros Provisórios ou Definitivos que já eram marcas para outra gente, apesar de serem as marcas mais rascas do mercado, pois até se costumava dizer que mais valia fumar Definitivos provisoriamente do que Provisórios definitivamente.

[Venda Sr. Joaquim do Rosário]
Outros escolhiam outros poisos, pois Alcoutim tinha naqueles tempos uma oferta bastante diversificada de Tabernas que dava para todos os gostos e feitios, desde a parte média/alta da Vila até junto ao Rio. Era a Taberna do Sr. Simões logo ali ao pé das Portas, era a seguir a Taberna do Ti António Joaquim meu avô a menos de 20 metros, era a Taberna do Sr. Serafim já na Praça e quase em frente à Taberna do Sr. Joaquim do Rosário.

[Venda do Ti Sabino, 1965]
Finalmente junto ao Guadiana existia a Taberna do Ti Sabino, “um bem disposto” sempre na galhofa (mal sabia ele a mina de dinheiro que por ali ia passar, pois hoje a sua velha tasca foi transformada numa agência bancária!) que era o único que explorava exclusivamente a Taberna, pois todos os outros associavam Taberna e Mercearia na casa ao lado, havendo até alguns deles que lhes juntavam outros negócios como a venda de tecido, de peixe, algum material de construção, etc., etc., etc...

Mas era a Taberna do meu avô que à noite juntava mais gente, talvez pela localização mais central e lugar de maior confluência dos alcoutenejos. Ou talvez pela sua maneira de ser mais popular e liberal, ou talvez... eu sei lá, porque era assim que os meus olhos a viam! Atente-se na extraordinária perspicácia popular que pela sua denominação, escalonava automaticamente os diferentes extratos sociais. Das cinco Tabernas existentes havia três Tabernas dos Senhores Fulanos de Tal e duas dos Ti´s, a do Ti Sabino e a do Ti António Joaquim.

Apesar de já ser noite, praticamente vinham vestidos da mesma maneira como tinham andado o dia inteiro a trabalhar no campo, com o chapéu sempre enterrado na cabeça como se o sol ainda queimasse, as mesmas calças, o mesmo casaco e camisa que lhes tinham servido de fato de trabalho durante o dia. Quanto muito tiravam os “ceifões”.

Trabalhavam no campo a maior parte deles, mas também vinham barqueiros e contrabandistas, pescadores, pedreiros, sapateiros, latoeiros, barbeiros e outras pequenas profissões existentes ou até gente polivalente que fazia o que aparecia desde a descarga e a carga posterior de Guano para os Montes, à carga e descarga de trigo para o Celeiro, à venda de peixe pelos Montes, ao trabalho no Lagar na época da azeitona e na Forja, ao trabalho no campo ou no rio e que naquele tempo talvez chegassem a atingir ainda umas dezenas de pessoas.

Gente de trabalho, a Taberna era o seu local preferido para passar o serão, quer fosse de Inverno quer fosse de Verão. No Verão iam depois de beber um copo a meio do serão sentar-se nos poiais das casas, à espera que o fresco chegasse e lá continuavam em amena cavaqueira e quando se proporcionava, até arrancavam uma valente “alentejanada”. O “pessoal de gravata” tinham outros locais de encontro e de convívio e juntavam-se principalmente na Sociedade para uma jogatana de cartas, de damas ou de dominó ou para uma leitura do jornal, passeando-se depois em grupo pela estrada acima até à Curva da Amoreira, com paragem obrigatória no tradicional Banco do Celeiro aonde fumavam uma cigarrada.

[O "pessoal da gravata"]

Mas ali na Taberna do meu avô falava-se de tudo. Do trabalho do dia-a-dia, das sementeiras e das colheitas, das estórias ainda recentes de contrabando, das estórias de caça e pesca umas mais actuais outras mais antigas, da antiga Feira de Alcoutim e do movimento de gado português e espanhol que ali se concentrava, da Cobra com mais de 20 metros que até já tinha pestanas e que muitos já tinham visto, pois aparecia no Cercado do Mineral e dormia no Castelo Velho – versão distorcida da Moura Encantada daquela época com certeza – tudo passava por ali em revista durante a noite. Sentados de pernas cruzadas, sempre com o cigarro ao canto da boca e o morrão sempre a crescer até começar a encurvar, caia-lhes de tempos a tempos para o colo e eles lá descruzavam as pernas calmamente sacudindo a cinza para o chão, num gesto lento e compassado como quem estava sempre a dançar o mesmo passo de tango.

[Ribeira de Cadavais. Desaparecidas passadeiras do Pego Fundo. Foto JV]

Gostava de todos e dava-me bem com todos eles, mas como em tudo na vida há sempre um ou outro que nos cai mais no goto. Tinha uma especial simpatia pelo Ti Zé Brandão e pelo Ti Zé da Horta. Talvez por serem dois solteirões que me davam mais confiança e que brincavam mais comigo, mimando-me com gentilezas como se fosse o filho que não tinham. Muitas vezes costumava espera-los nas passadeiras do Barranco do Poço das Figueiras para me meter com eles. Ao ti Zé Brandão que costumava armar às perdizes no defeso e num tempo em que a GNR metia medo, gostava de o sobressaltar e perguntava-lhe sempre “então quantas perdizinhas leva aí hoje, olhe que a GNR está aí à frente”! E o Ti Zé Brandão naquele seu sorrisozinho matreiro e comprometido lá ia dizendo: “Áh safado... saíste-me cá um velhaco!” Ao Ti Zé da Horta recitava-lhe sempre o mesmo poema e com a encenação do costume, levando a mão ao sítio aonde as pernas se juntam: “o Ti Zé da Horta / já não tem pipi / o que as moças querem / tenho eu aqui!” e ao que ele respondia na sua voz ternurenta e cavernosa do tabaco: “Ai moço dum cabrão que nunca mais cresces para teres juízo... que paciência dum cabrão que eu tenho que ter contigo!”.

Há dias ouvi na televisão um garoto com 5 ou 6 anos de idade, quando lhe perguntavam o que fazia no Computador Magalhães, responder que fazia jogos e passeava pelo mundo. Fez-me lembrar a Taberna do meu avô. A Taberna do meu avô foi de facto a minha primeira Escola de Vida e que substituiu com vantagem quer computadores, quer todos os livros de aventuras que nunca li, mas que tive o privilégio de ouvir muitas das vezes contadas pelos próprios intervenientes. Era dali que eu imaginava o mundo em andamento. Ao fim e ao cabo era ali que eu “brincava” no computador, “via” televisão e “espreitava” o mundo nas suas diversas andanças. Recordações do passado da minha infância que ficaram enterradas nas brumas da nossa memória, numa época em que ainda havia tempo para um saudável convívio e um copo de três claro.