segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Quando as Festas de Alcoutim tinham outro sabor...

Pequena nota
Esta crónica do nosso colaborador e amigo, Amílcar Felício, é oportuna e revejo-me em quase tudo que refere.
Já não assisti ao peditório pelos montes e também não me lembro da paliçada para evitar os “penetras”. O restante, é tudo dos meus dias.
É evidente que aquele tipo de “festas” desmoronou-se completamente com o 25 de Abril e com os balúrdios de dinheiro chegados ao município e utilizados onde davam ou dão jeito.
Para mim as festas acabaram por terem perdido o seu altruísmo e sentido popular.
Oh Amílcar, ambulância só conheci no meu tempo o táxi do Sr. Mateus!

JV





Escreve


Amílcar Felício



Se calhar estou a ficar velho do género “no meu tempo é que era bom”! Mas francamente acho que não... Cheguemos pelo menos a um consenso e convenhamos que no mínimo, as Festas de antigamente tinham um sabor “humano” diferente! Eram 30 dias de um Alcoutim solidário em que toda a Vila confraternizava e se empenhava como um só homem: rapazes e raparigas, homens e mulheres, velhos e crianças ninguém recusava uma mãozinha para a preparação das Festas que atraía gente de todo o Algarve, do baixo Alentejo e de todas as povoações espanholas próximas de Sanlúcar. Era também o ponto de reencontro por excelência, para aqueles mais ousados e com maior ambição que um dia tinham partido – embora nada semelhante à grande sangria que iria ocorrer a partir dos anos sessenta – à procura de uma vida, que Alcoutim não lhes podia proporcionar.

As Meninas e as Senhoras dedicavam-se a fazer e a colar as bandeirinhas em centenas se não quilómetros de metros de corda, que ornamentavam a parte baixa da Vila e a enrolar os bilhetinhos para a Quermesse com um ou outro premiozito à mistura, resultado do Peditório que se fazia todos os anos e que naturalmente atraía os visitantes a comprar uma rifa. Organizavam também a própria Quermesse, assegurando a venda das rifas naqueles 3 dias.

Os Rapazes por seu lado faziam os habituais Peditórios, palmilhando dezenas e dezenas de quilómetros pelos Montes do Concelho e a verdade é que todos contribuíam com aquilo que podiam, principalmente com trigo e outros cereais, pois o dinheiro ainda era mais escasso do que nos nossos dias. Ainda me doem as costas... Deixávamos depois as sacas em casas conhecidas, pois os nossos meios de transporte eram bastante rudimentares. O Padre Moreira posteriormente fazia o favor de transportar toda aquela sacaria para a Vila. Era mais um carro que existia em Alcoutim na década de sessenta e que não mencionei por esquecimento na minha última crónica.

A última semana antes do início das Festas era dedicada aos enfeites em verdura de todo o Recinto e do Palco, com a construção de uma sebe em cana em todo o perímetro do Recinto o que impedia a entrada de penetras e o desfrutar do espectáculo à borla. E lá íamos nós dias a fio ora para a Lourinhã ora para o Alcaçarinho conforme o sentido da corrente da maré, transportando jangadas e jangadas de canas e verduras em cima das quais nos transportávamos como autênticos piratas, para as conduzir a bom porto até Alcoutim.

Assim, quem quisesse refrescar-se com uma cerveja no Recinto das Festas ou dar um pezinho de dança tinha que pagar a entrada. A rapaziada assegurava também a organização da Bilheteira e das Entradas, a exploração das Mesas e do Bar. Tudo revertia para a obtenção de fundos para a compra de uma Ambulância para o Hospital, nobre objectivo cujo custo na altura se a memória não me falha estava avaliado em 400 contos, ou sejam 2000 euros. E tudo se fazia com dedicação e amor à camisola e o facto é de que nunca se me constou que tivesse existido algum desvio de bens ou do dinheiro angariado, excepto uns zuns zuns de que alguém hierarquicamente superior em determinada altura tivesse usado o dinheiro temporariamente em actividades particulares, mas que posteriormente tudo teria sido reposto. Nunca cheguei a saber se a dita ambulância chegou a ser comprada...

[Festas da Vila em 1973. Foto JV]

Mas muitas vezes não nos limitávamos apenas a organizar simplesmente as Festas. Alguns anos, muitos de nós não só organizávamos o Circo para as Festas, como também fazíamos de “palhaços” ora com jogatanas de futebol principalmente com os espanhóis de Sanlúcar, ora participando na travessia do Guadiana e no concurso do Pau de Sebo, ora actuando no Rancho Folclórico de Alcoutim sob a batuta do Mestre João Ricardo, o mais importante agente cultural da época na Vila e tema já referido neste blogue por José Varzeano. Houve um ano até que tentámos organizar um grupo musical com alguns instrumentos concebidos por nós, como por exemplo um xilofone de garrafas. Mas as aptidões musicais eram fracas e o projecto morreu à nascença.

[Festas da Vila de 1998. Pau de sebo. Foto JV]

A baixa de Alcoutim naqueles 3 dias transformava-se num terreiro de Tendas e de Tendeiros, onde tudo aparecia para venda. Resquícios herdados naturalmente da original e secular Feira de Alcoutim e de que as Festas nunca abandonariam completamente, embora sem atingir a dimensão e a importância das Feiras da primeira metade do século XX, fundamentalmente à base de Gado Asinino, Cavalar e Muar no lugar da Fonte Primeira, hoje conhecida como praia do Pego Fundo. Naturalmente do que mais recordo dos meus tempos de menino era da doçaria desde o nógado aos suspiros, passando pela batata doce que como uma verdadeira Rainha surgia naqueles 3 dias para ser apreciada pelo paladar alcoutenejo, pouco habituado durante o ano aquelas iguarias.

Para o Comercio Local aqueles 3 dias eram um “ver se te avias” com aumentos de vendas significativos. Isso obrigava evidentemente a um reforço considerável de stockes, pois nuestros hermanos a sofrer ainda as consequências da guerra civil que tinham economicamente debilitado bastante o país, deslocavam-se de todas as povoações próximas de Sanlúcar como o Granado, os Castellejos etc., etc., etc., quer para as Festas, quer sobretudo para a compra de bens, atraídos pela qualidade do nosso café, da nossa corda e do nosso tabaco e assim, apesar da proibição de comercialização ainda existente, aproveitavam aquela ocasião para levar à socapa principalmente aqueles bens.

[Rancho de Alcoutim ensaiado por João Ricardo]

E era também uma salutar guerra entre comerciantes que já naqueles tempos disputavam a exclusividade dos melhores cafés, usando todo o seu engenho e arte para cativar “o caixeiro viajante” com os seus argumentos – há um ror de anos que não proferia o nome de tal profissão! - nobre profissão caída em desuso, pois quase todos subiram na vida e hoje são respeitáveis “gestores de clientes” ou “técnicos de vendas”, apesar de lá ir ainda subsistindo por aqui ou por ali algum antigo vendedor, mas já em vias de extinção, claro.

Aqueles “caixeiros viajantes” eram de facto uma figura marcante naqueles tempos e um verdadeiro correio das novidades e das notícias e de facto ficávamos sempre mais bem informados do que se passava por esse mundo fora, quebrando-se por momentos aquele isolamento em que Alcoutim vivia no seu dia-a-dia. Eram como se fossem da família e ainda conservo a memória de alguns, como se fossem parentes chegados de sangue. De facto comiam e às vezes até dormiam na casa dos clientes. Até chegávamos a organizar pequenos passeios para confraternizar, quando eles visitavam Alcoutim! Eram de facto tempos feitos de outro tempo e o tempo naquele tempo dava para tudo... e às vezes ainda sobrava tempo! Era um tempo com um sabor diferente não há dúvida, hoje é que não há tempo para nada!