terça-feira, 20 de setembro de 2011

O "monte" do Marmeleiro - o lugarejo mais próximo da Vila de Alcoutim

(PUBLICADO NO JORNAL DO BAIXO GUADIANA Nºs 94, 95 e 96, respectivamente de Fevereiro, Março e Abril de 2008 e pp 21, 20 e 24)

[A entrada do "monte" com nova placa toponímica. Foto JV]

Entre os elementos que procuramos reunir para podermos apresentar as pequenas povoações, aqui conhecidas por montes (já o pároco da freguesia de Giões, respondendo ao inquérito de 1758, escrevia:- as mais aldeias a que chamam cá montes(...) e que se espalham pela Cumeada do Pereirão, mais propriamente no concelho de Alcoutim, fazem parte os da sua localização por onde normalmente começamos e neste caso a partir da vila.

Saímos pela estrada nº 122-1 que vai contornando os cerros para os poder vencer mais facilmente. Enquanto que do lado esquerdo a estratificação nos mostra através do corte as camadas de xisto, do lado direito o vale é profundo. Para trás e à esquerda, ficou o desvio para a chamada estrada marginal (E.M. 507).

Cerca de dois quilómetros andados, encontramo-nos na Volta Grande, curva bem pronunciada da qual se desfruta bom panorama, principalmente na época da floração das amendoeiras. A estrada continua a subir. Vão aparecendo à sua beira alguns eucaliptos e agora, pela primeira vez, duas alfarrobeiras. Estamos a cerca de três mil metros da vila, na designada Portela Alta. Até aqui foi sempre a subir, agora desce-se pela primeira vez. A seguir a uma pequena recta, sucedem-se as curvas e contra curvas, mas agora em terrenos planos. Uma recta mais extensa, deixa-nos ver ao longe a placa que nos indica à esquerda o desvio para este monte que fica à distância de um quilómetro. No local, um refúgio para os passageiros de transportes públicos.

[Vista geral da povoação. Foto JV, 2005]

A estrada asfaltada que agora tomamos (E.M. 1058) estreita e sinalizada foi, penso, que das primeiras e únicas construídas antes do 25 de Abril. À esquerda fica um montinho, constituído por um único fogo. As curvas sucedem-se até que de repente aparece a povoação encavalitada numa pequena elevação como era aconselhável para defesa e observação. No vale bem pronunciado, um laranjal.

A placa toponímica que o identifica, na altura, quase não se percebia.

Abordaremos agora o topónimo que aparece cinco vezes no dicionário que para o efeito habitualmente consultamos (1) e que possui outros com a mesma origem, como Marmeleira, Marmelal e Marmelo.

José Pedro Machado (2) apresenta-o como representado dezassete vezes.
As causas determinantes no aparecimento dos topónimos são variadíssimas, mas grande parte está relacionada com aspectos geográficos, da flora e da fauna, de antroponímia e de instituições.

Neste caso tem, como é por demais evidente, um sentido vegetal; resta-nos saber qual foi a particularidade para a sua aplicação: - porte, idade, produção, raridade ou defeito, são hipóteses.

O marmeleiro é um arbusto ou árvore da família das rosáceas, de folha caduca e flor rosada, cultivada na Europa meridional, mas de origem asiática e cujo fruto, o marmelo, é comestível. (3)

Com a romãzeira, constituía dos frutos mais vulgares na margem do Guadiana, desempenhando a importante função da manutenção das margens, suportando o seu raizame as enxurradas própria do rio.

Continuando na toponímia, quero aqui referir alguns topónimos constantes da matriz predial rústica da zona, que têm algo para dizer. Reguengo é um deles. As terras reguengueiras eram as que pertenciam ao rei. No arquivo histórico da Misericórdia de Alcoutim, por volta de 1970, encontrámos documento em que se dizia que o rei doava à Santa Casa os bens que lhe pertenciam no termo de Alcoutim. Por mais que procurássemos e apesar de sabermos que existia uma relação anexa, não a conseguimos encontrar, nem nada que nos levasse, na altura, a localizá-los. Se a memória não nos atraiçoa a tal distância, tratava-se de um documento avulso escrito pelo provedor, Manuel António Torres. Possivelmente já terá desaparecido com as limpezas que periodicamente são feitas, principalmente quando se muda de gestores. Hoje, penso que a identificação poderá estar, se ainda for possível fazê-lo, nos foros que a Santa Casa cobrava até à sua abolição ocorrida após o 25 de Abril.

[Casa típica. Foto JV, 2005]

Outra zona próxima do Marmeleiro chama-nos a atenção pelo seu nome. Trata-se da Toscana. Terá vindo dessa região, hoje incluída na Itália, gente que subindo o rio, por aqui se fixou? Mais para o norte e igualmente próximo do Guadiana e já no concelho de Mértola existe o monte dos Lombardos que poderá ter a mesma interpretação no que respeita à Lombardia.

Alcaçarinho, diminutivo de Alcácer, do árabe al- qaçar(4) e por último o Vale de Condes com o seu barranco que deita as águas, na época invernosa, no Guadiana., zona onde se encontram vestígios de um templo conhecido pelo povo por igrejinha, do período romano - visigótico, perto do qual se localiza uma necrópole com seis sepulturas identificadas. (5)

Este topónimo tem a ver com os Condes de Alcoutim que foram senhores de grande número de bens no concelho, nos quais se incluíam muitas herdades e esta zona toda lhes teria pertencido. Esses bens, depois de terem passado para a posse da Casa do Infantado depois do último conde ter entrado na conjura contra D. João IV, pelo que foi degolado no Rossio, em Lisboa, vieram a ser adquiridos pela burguesia local, durante o liberalismo, quando a referida Casa foi extinta por Decreto de 18 de Março de 1834.

O antiquíssimo caminho que vindo de Tavira chegava a Alcoutim, atravessava a serra, desembocando na Porta de Tavira, passava bem perto deste monte e ainda encontramos vestígios dele. Nos anos sessenta do século passado, as pessoas deste monte que se deslocavam a pé à vila, ou vice-versa, o que era habitual, utilizavam-no sempre. Era à vila que recorriam para comprar o açúcar, o café, arroz, massa, fósforos e pouco mais, pois o restante era da sua produção. Por outro lado, a exímia doceira da vila, Ti Ana Brandoa, ia a este monte frequentemente, mesmo depois de avançada idade, onde adquiria amêndoa para confeccionar o seu incomparável nógado, pois os produtores da vila ofereciam-lhe normalmente algumas dificuldades, a nível de preço e quantidades.

Sempre ouvi dizer e é verdade, o Marmeleiro foi sempre um monte pequeno.

Em 1839, Silva Lopes (6) atribui-lhe apenas quinze fogos, o que certamente albergaria mais de sessenta habitantes, sendo o menor da freguesia de Alcoutim. Em 1876 tinha, segundo elementos do Centro de Saúde de Alcoutim, vinte e seis habitantes. No Censo populacional de 1991, o número já tinha descido para vinte, existindo igual quantidade de edifícios. Em média e se os elementos estiverem correctos, de trinta em trinta anos construiu-se uma habitação.

[Uma rua da povoação. Foto JV, 2005]

A população actual não chega à dezena, valendo contudo a permanência acidental de alguns dos seus filhos que apesar de estarem fixados por outras paragens, não deixaram de recuperar as casas que herdaram dos pais, dando-lhes melhores condições e que ocupam quando lhes é possível.

O monte resume-se a uma rua e nele encontrámos casas fechadas, revestidas de azulejos, as portas e janelas de alumínio dão nas vistas, sabendo contudo que existem casas recuperadas dentro das características tradicionais, sem descurar, como não podia deixar de ser, das indispensáveis comodidades. Houve mesmo quem tivesse recuperado o vão nas largas paredes, aqui muitas vezes designado por pilheira. Era uma maneira muito típica de arranjar lugar para colocar tigelas, pelanganas e outras (poucas) peças utilizadas, sem o recurso a móveis. Em todo o concelho, ainda é possível ver muitas nas casas antigas, mas nunca ou raramente aproveitáveis nos restauros.

Referimos a existência de um algar, cavado na rocha, sobre o qual se construiu uma habitação. As águas dos telhados são conduzidas para lá, de uma maneira original, servindo assim de reservatório do precioso líquido. As pessoas idosas atribuem-lhe grande antiguidade. (7)

Nunca existiu aqui qualquer estabelecimento comercial visto o reduzido número de habitantes não o justificar.

Depois do fornecimento de energia eléctrica, teve água distribuída por fontanários cuja estação elevatória está datada de 1988 e os arruamentos foram pavimentados. O telefone e a caixa do correio, se ainda existe, são regalias com cerca de trinta anos.

Recentemente (2002) forneceu-se água ao domicílio, colocando-se uma bomba de desinfecção mas... sem se criar o competente esgoto. (8)

À entrada do monte o forno comunitário, com alpendre, mas de construção relativamente recente – não se trata de um daqueles e há-os no concelho, de que ninguém se lembra de quando foram construídos.

A pastorícia foi sempre uma actividade importante na vida dos marmeleirenses, a par da cerealicultura.

Sabemos que em 1771 e seguintes, manifestavam o seu gado, constituído por cabras, chibatos, ovelhas, carneiros, borregos e ainda com muita frequência, reses (gado bovino), Gregório Gonçalves, Diogo Gonçalves, Manuel Gonçalves, José Dias (9), António Martins Corvo e Romão Vaz. (10)

[Ouro aspecto da entrada do "monte". Foto JV, 2005]

Em sessão de Câmara, realizada em 22 de Dezembro de 1843, com a presença dos principais cidadãos da freguesia, na Real Capela de Nª Sª da Conceição, com o objectivo de resolver o problema dos enterramentos, tendo-se acordado por unanimidade fazer um cemitério no sítio de S. Sebastião, o Marmeleiro fez-se representar por José Madeira. (11)

O mesmo indivíduo, já viúvo, em 1852 faz parte dos quarenta maiores contribuintes que hão-de eleger a Comissão para eleição de deputados.

O lugar de Juiz Eleito da freguesia de Alcoutim, em 1858, era desempenhado por José Pereira, igualmente desta pequena povoação.

O mesmo cidadão, quando era vereador da Câmara pede verbalmente que a mesma lhe concedesse no rossio do monte, próximo do caminho que vem para a vila e junto à cerca de José Galrito, do mesmo monte, oito metros de terreno para fazer uma casa, o que a Câmara lhe concedeu sem prejuízo dos habitantes do dito monte. (12)

A Cheia Grande (1876) também atingiu as propriedades (várzeas) dos seus habitantes e da relação apresentada dos prejuízos causados constam os nomes de José Pereira, que sozinho apresentou mais prejuízos do que todos os restantes juntos, Manuel Dias, Francisco Martins, José Galrito, António Dias, Augusto Dias e Manuel Agostinho.

Como se vê nesta e noutras circunstâncias, a população dividia-se em poucas famílias, sendo notório a dos Dias e a dos Gonçalves.

O capitão de Ordenanças, José Dias Justo, é escrivão da Santa Casa da Misericórdia em 1774/75 e em 1796/97. Outro capitão era Manuel Gonçalves, casado com D. Maria Pereira, faz o seu testamento em 1842 desejando ser sepultado na Igreja da Misericórdia.

[O "montinho" um pouco afastado mas fazendo parte da povoação. Foto JV, 2005]

Em Dezembro de 1893, Maria dos Ramos foi presa pelo crime de ferimentos na pessoa de José Madeira, solteiro, seu vizinho.

Leite de Vasconcelos recolheu nas proximidades um machado de pedra polida que depositou no Museu Etnográfico de Lisboa. (13)
Para terminar e por ser uma actividade nova, diremos que a Marmelcaça (Zona de Caça Turística) tem a sua sede nos arredores deste monte, ocupando uma zona cinegética onde se encontram perdizes, lebres, coelhos e javalis.


NOTAS

(1) – Novo Dicionário Corográfico de Portugal, A C. Amaral Frazão, Editorial Domingos Barreira, Porto – 1981
(2) – Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, Edição Horizonte/ Confluência, 1993.
(3) – Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, (2 volumes), Academia das Ciências de Lisboa- Verbo , 2001
(4) – Vocabulário Português de Origem Árabe, José Pedro Machado, Editorial Notícias, 1991
(5) – “O Algarve Oriental Durante a Ocupação Islâmica” , Helena Catarino, in Al Ulyã, Revista do Arquivo Histórico Municipal de Loulé, nº 6 Vol I , 1997/98.
(6) – Corografia ou Memória Económica, Estatística e Topográfica do Reino do Algarve, 2 Volumes, Algarve em Foco Editora, Faro, 1988.
(7) – Alcoutim, Capital do Nordeste Algarvio (Subsídios para uma monografia), José Varzeano, Edição Câmara Municipal de Alcoutim, Rio Maior, 1985.
(8) - Alcoutim – Revista da Câmara Municipal de Alcoutim, nº 9 , Dezembro , 2002
(9) – Sabia escrever. Era 5º avô de meu filho.
(10) – Tomo de Manifestoz da Camera dos Gadoz, iniciado em 1771 (?)
(11) – Livro de Actas da Câmara Municipal de Alcoutim.
(12) – Acta de 30 de Janeiro daquele ano.
(13) -“ Objectos Arqueológicos de Alcoutim”, in O Arch. Port., Lisboa, Vol. XXIV, 1919.