sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - X





Escreve

Daniel Teixeira




O CHICO ARTUR

O Chico Artur casou com uma senhora (Inácia) residente e natural de Alcaria Alta. Ouvi falar algumas coisas do pai dela, comerciante de algum relevo proporcionado e vendedor de uma coisa que pelo que me apercebi dava estatuto : o guano, nitrato do Chile, era pago a pronto e vendido em quantidades variáveis ao longo de todo o tempo da lavoura e não havia devolução.

Havia empate de capital, risco, mesmo pequeno, mas numa terra em que não havia praticamente dinheiro «vivo» o facto de ter capital era sempre relevante. O negócio, depois do seu falecimento foi retomado pelos lavradores.

Tinha ainda um armazém pegado à casa onde em alturas próprias se realizavam bailes: com os meus 9/10 anos, tentei entrar num mas alegadamente a festa era para maiores de 18 anos: ouvi no entanto o toque do acordeão nas mãos de um exímio mestre que a minha mãe dizia só saber tocar «fon, fon» e que «quanto ele mais fanfonava mais depressa o pessoal bailava».

Da mãe da Inácia nada ou quase nada sei mas é provável que ela existisse em vida ainda durante o tempo da minha infância só que um e outro (Pai e mãe da Dª Inácia) se me varreram do campo das imagens que a mente recorda.

[Aspecto da parte comercial da casa de Chico Artur, no Pereiro. Foto JV, 2011]

A Inácia, alguns anos mais nova que a minha mãe foi quem eu sempre conheci a tomar conta da mercearia e taberna do Monte. A organização do balcão era bem parca: a maior parte das coisas que se queriam comprar, e normalmente sabia-se o que havia na Ti Inácia, estavam algures estacionadas em dois quartos / armazém, um com entrada logo atrás do balcão e um outro á direita do fim do balcão em frente de quem entra. Havia uma outra porta, esta para o quarto do casal (logo à direita) e provavelmente ou seguramente havia mais divisões lá para trás.

Uma recordação que eu guardo é do tempo da caça, nos dias permitidos, em que os caçadores iam à taberna e se deparavam com cerveja quente: havia uma alternativa que era algumas garrafas que estavam dormindo num balde afundado no poço das traseiras o que pouco alterava a situação. Mais tarde vi por lá o primeiro frigorífico a gás da minha memória.

O sistema de compras no Monte estava escalonado de acordo com o hábito: açúcar, fósforos, petróleo, latas de conserva de peixe e mais algumas coisas assim. Havia uma estante atrás do balcão com tabaco e garrafas de aguardente e vinho. Não era muito variado o stock porque na sua grande parte compravam-se coisas em Giões, tanto no senhor Mateus, como num outro cujo nome me não lembra mas que foi o introdutor da máquina de café na aldeia.

O café era já moído, acalcado na forma com uma colher de sopa, a máquina era pequenina, de dois bicos e a gás e era ligada quando fazia falta e tinha mesmo de se esperar quando calhávamos a aparecer no período de repouso dela (e do gás). Normalmente pedia-se a bica, ia-se ás compras à contra loja, o que era sempre demorado, eu entretinha-me a conversar com o senhor ou ficava por ali e lá ia o pessoal comprar botões e tecidos encomendados ou peças de roupa acabadas de chegar, arroz, café, pouca coisa, afinal. O sistema de compras de mantimentos ou para arranjos caseiros era relativamente fácil porque na sua grande parte havia de quase tudo em casa: feijão, grão, batatas.

O senhor Mateus era outro tipo de negociante: era representante das máquinas de costura Singer na altura e tinha uma colecção de linhas e botões para todos os gostos. Quem vendia era a esposa, ele encarregava-se da parte da taberna quando não estava ausente em vendas fora de portas, levado pelo carro de rodas largas e pela sua bem ajaezada junta de mulas.

Pois bem e entrando agora no Chico Artur, objecto principal desta crónica, este era natural do Pereiro, negociante de gado (ovelhas e porcos) e foi o introdutor do porco branco no Monte de Alcaria Alta e durante muito tempo o único criador. Tinha uma carrinha (talvez Ford Transit) de caixa aberta que por vezes chegava altas horas da noite e quase sempre partia de madrugada.

A geração de porco preto era não só de tradição como vivia em parte de tremoços, de restos de comidas misturadas não cozinhadas (talos de legumes, figos de pita, etc.) com farinha de centeio ou de cevada. Por vezes «ganhava» um tomate esborrachado.
O porco branco, por excelência era animal de ração e comprar ração não estava ainda nem nos meios de uso de dinheiro no Monte nem na mente das pessoas. A circulação de dinheiro era quase nula e o sistema de trocas processava-se em quase tudo: mesmo os vendedores ambulantes que eram poucos levavam ovos em troca ou uma ou duas panelas de barro (que eram as medidas usadas) com figos secos, feijão seco ou grão.

[Aspecto da habitação de Chico Artur no Pereiro. Foto JV, 2011]

Os porcos brancos cresciam mais depressa, engordavam mais depressa, à base da ração é claro e eram sobretudo porcos para matança fora de períodos anuais, eram carne para revenda. Na minha vida só assisti à matança, não à morte, de dois porcos. Um era ainda criança e fez-me uma verdadeira impressão ver o pobre do animal a estrebuchar (por reflexos condicionados aprendi depois) quando da tostagem do corpo na fogueira de lenha para queimar os pelos e uma outra muito mais tarde em que por convite e simpatia resolvi não fazer a desfeita de recusar.

Foi uma manhã complicada essa, o matador amador/profissional estava mal das costas na véspera e apresentou baixa nessa mesma manhã. Entre os presentes ninguém sabia nem queria matar o porco. «E se sai mal e o animal fica aqui a sofrer uma série de tempo?» dizia-se...
Lá acabou por aparecer o Manelito Vilão que nunca tinha matado nenhum porco mas que dizia que era só acertar na veia e etc. e acabou por fazer o serviço praticamente sozinho porque o resto do pessoal debandou quase todo só regressando quando tudo estava silenciosamente certo. A minha prima, dona do porco, ficou de cara virada apanhando com uma tigela o sangue que jorrou. O Manelito suou por todos os poros e acabou sentado e derreado num poial jurando que nunca mais...Enfim.

O Chico Artur tinha grande orgulho também numa criação sua, aliás o maior orgulho, por aquilo que me apercebi que era o cruzamento entre porcos e javalis. Francamente nunca acreditei muito nessa treta e durante muito tempo pensei tratar-se de uma forma dele gozar a minha situação de citadino ignorante.

Quando ele falava das vantagens do porco - javali vinha-me à ideia uma história que se contava para desfazer da esperteza dos habitantes de uma povoação vizinha: um deles tinha encontrado uma porca fugida, tomara-a por um javali e vá de ir buscar a espingarda a casa e tiro. Fizera um repasto de javali com convidados e tudo, e todos, entre os presentes, comeram javali nesse dia...até o dono da porca tresmalhada.

No caso do Chico Artur a história era assim: um individuo de um monte das redondezas tinha encontrado um javali arrastando numa pata uma ratoeira de coelhos e lebres. Por artes e ajuda conseguiu laçar o animal, praticamente enrolá-lo em cordas e levá-lo para um pocilgo. O animal ficou coxo mas era uma fêmea e em pouco tempo e com a visita de um marrão acabou por emprenhar. Isto é a história, não garanto nada disto...
Dessa javali saíram depois cerca de uma meia dúzia de animais misturados e o Chico tinha comprado um: tinha-se ficado por um macho porque pensava inverter o processo de procriação e como partia cedo e chegava tarde não dava para espreitar o pocilgo. Ele bem me falava e eu bem dizia que sim...
Mas um dia em que o carro avariou e ele teve de ficar no monte mostrou - me o animal. Bem...os javalis que eu conhecia dos livros tinham sempre grandes presas e aquele tinha uma dentadura normal de porco, caninos grandes que arreganhava, sim, mas isso para mim era normal.

O que o distinguia era sobretudo o pelo: esse era sem dúvida mais abundante que num porco normal. Fiquei indeciso, de facto, nunca tinha visto um animal porcino com tanto pelo e nem sequer para desempate uma dentadura de javali ao vivo.
Nos anos seguintes não tive oportunidade de desenvolver a questão: quase nunca o encontrava e ele estava mais tempo no Pereiro do que em Alcaria Alta. Mais tarde também a mulher abandonou o local indo igualmente viver para o Pereiro.
Mas ainda me fui perguntando sempre se «aquilo» que tinha visto era um javali - porco, um porco javali ou simplesmente um porco cabeludo.