sábado, 13 de agosto de 2011

As "boleiras" de Alcoutim

Pequena nota
Apresentamos hoje aos nossos visitantes / leitores um pequeno texto que publicámos num periódico regional onde então colaborávamos. Foi escrito há 34 anos. Não são dois dias!
O texto vai como foi publicado, a ilustração é que é de agora. Naqueles tempos publicar uma foto era complicado, o que hoje está extremamente facilitado.
Alguns dos que o irão ler ainda não eram nascidos e outros não tiveram conhecimento dele.

JV

(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 25 DE FEVEREIRO DE 1977)

Entre as actividades de Alcoutim, uma houve, caracteristicamente feminina (e não só) que, pelos menos nos fins do século passado e começos do actual, ocupou lugar de destaque e que, praticamente se limitava à vila. Em contrapartida, outras eram próprias de determinada freguesia ou zona e na vila não se faziam sentir.

Referimo-nos ao fabrico, puramente artesanal de determinado tipo de bolos, que deu origem às típicas boleiras ou doceiras de Alcoutim, ainda hoje lembradas pelos frequentadores mais idosos dos mercados, feiras, festas e romarias das redondezas.

Enquanto as mulheres dos “montes” se desdobravam principalmente pela actividade caseira e pelo precioso e indispensável auxílio ao marido, nos trabalhos agrícolas, a alcouteneja, ainda que também o fizesse, dispersava-se, encontrando na vila outras fontes de trabalho que mais a ocupavam, isto devido a diversos factores socio-económicos.

Como e quando teria aparecido esta actividade na vilazinha do Algarve serrano, antiga praça forte, porto outrora importante no Guadiana? Assunto à margem das nossas modestas possibilidades, pois consideramo-lo próprio de especialistas, obriga-nos, contudo, a dizer algo que se pode relacionar com ele.

Há cerca de dez anos, um alcoutinense amigo, radicado em Faro, numa conversa “higiénica” informou-nos que outro filho desta vila, já venerando ancião, em passeios por bibliotecas, arquivos e alfarrabistas, lera algures o desterro de uma doceira da corte para aquela vila, cujo apelido ainda se mantinha por lá, na altura da consulta.

Curiosamente, a informação joga com dados, segundo os quais a vila teve o privilégio de ser couto para trinta criminosos, por concessão de D. Afonso V e de quarenta no cível, por D. Dinis, certamente quando lhe concedeu foral.

A confirmar o degredo, teria a especialista do ramo desenvolvido aqui a sua actividade, dando origem às conhecidas boleiras de Alcoutim?

De carácter tradicional, nada encontrámos, a não ser aquilo que nos indica uma certa antiguidade: veio de geração em geração, de mães para filhas.

AS TÉCNICAS DO FABRICO

As espécies confeccionadas, prendem-se aos produtos de origem local: farinha, amêndoa, mel, ovos e azeite. Com excepção do açúcar, tudo aqui existia, podemos dizer que com abundância.

Entre as especialidades, o nógado ocupou lugar de destaque. Massa dura, feita com amêndoas, misturadas com mel, ainda constitui apreciada doçaria, que poderia ser cartão de visita da vila, tão espoliada. Ainda aparece à venda mas, segundo nos informam sem as características que o tornaram conhecido e apreciado. Do conjunto, era o mais caro e vendia-se aos maços.

Os suspiros (claras e açúcar), e o pão-de-ló (gemas, farinha e açúcar) eram feitos sempre em conjunto, pois havia necessidade de aproveitar a totalidade dos ovos.

Os bolos de mel (farinha, mel e azeite) e os de amêndoa, conhecidos por bolos de raiva (amêndoa, ovos e açúcar), eram outras das espécies confeccionadas.

Completando o conjunto, faziam “pupias” ou “rosquilhas” e cavacas, bolos secos de farinha e açúcar.

Para os fabricos, juntavam-se as boleiras duas a duas. Funcionando uma como ajudante, só assim conseguiam dar conta do serviço. Uma vez acabado este, invertiam as posições.

Os variadíssimos fornos de pão, espalhados pela vila, serviam também para cozer bolos. Poucos restam, pois se não se fabrica pão, muito menos se coem bolos.

A actividade foi intensa e numa vila tão pequena existiam dezenas de boleiras, umas fazendo dela, praticamente o seu meio de vida e outras praticando-a com carácter acessório.

COMO FUNCIONAVA O NEGÓCIO

Uma tosca mesa de características regionais (baixa, pés delgados, tampo rectangular e pequeno), forrada a papel brando, servia de banca de venda, na qual, além das variedades já apontadas, colocavam a garrafa de aguardente e o licor de salsaparrilha, vendidos a copo.

Ao lado do “armazém”, estava a caixa, simples e interiormente forrada de papel branco, com os bolos arrumados por espécies.

O negócio, que em relação a outras actividades era mais rendoso, parece que se circunscrevia aos mercados mensais, no quarto domingo de cada mês, então muito concorridos à Feira Anual de três dias, à festa da Srª da Conceição, agora sem significado no que respeita a movimento de massas e aos bailes e outros folguedos da vila, então frequentes.

Passou depois a estender-se pelo concelho, aos limítrofes, como Mértola, Castro Marim e Vila Real de Sto. António.

Assim, as boleiras não faltavam ao são Marcos, no Pereiro, a 25 de Abril, S. Pedro em Odeleite a 29 de Junho, Srª da Assunção em Giões, a 4 de Agosto, Srª dos Mártires em Castro Marim, a 15 de Agosto, Feira do Azinhal a 20 de Agosto, Festas de Monte Gordo e da Vila a 14 de Setembro, São Mateus em Mértola a 20 de Setembro e terminavam com a Feira da Praia, de 10 a 13 de Outubro, em Vila Real de Sto. António.
Além destes lugares de mercado, aproveitavam os “pagos” da Mina de São Domingos que se realizavam todos os dias 4 de cada mês. Eram normalmente mercados rendosos e havia boleiras que nunca os falhavam.
Quando o negócio corria mal e não vendiam tudo, iam pelas portas oferecendo a doçaria, por vezes mais barata. Com este processo salvavam muitas vezes o dia.
Dizem-nos algumas velhas boleiras que nas feiras e mercados que percorriam, não encontravam outras senão as de Alcoutim.

Típica actividade local, encontra-se praticamente extinta. Poucas mulheres sabem fazer o nógado, e, se o fazem, não conseguem dar-lhe aquelas características que o tornaram conhecido.

[Ti Ana Brandoa] A Srª Ana Bárbara Casegas, mais conhecida por Ti Ana Brandoa, apesar de ter passado há muito as oito décadas, teima em confeccionar o nógado, em que era exímia. Ainda na última festa da vila a vimos, sentada à sua banca.

Parece-nos que existe determinado “segredo” no fabrico desta especialidade. Se assim for, iremos perdê-lo? Deixará Alcoutim de poder contar com o seu típico nógado? Desejamos que isso não aconteça.

Não haverá quem esteja interessado na semi-industrialização nógado? Porque não?
Não encontramos por esse país fora especialidades regionais, algumas de menos valor, em tal situação?