domingo, 24 de julho de 2011

Relações de trabalho no Alcoutim de antigamente...





Escreve



Amílcar Felício




Logo que os homens se sedentarizaram desde tempos imemoriais, que se sentiram atraídos para fazer trocas de bens para satisfação das suas necessidades básicas. Na realidade a alteração do modo de vida dos homens de nómadas para sedentários, levaria ao desenvolvimento da agricultura o que permitiu a criação de excedentes que proporcionavam aquelas trocas.

Naqueles tempos e sem qualquer equivalência de valor, quem tinha excesso de caça trocava com quem tinha excesso de peixe, de milho ou de outro produto qualquer – era o chamado escambo – mas naturalmente que por vezes acontecia que quem tinha peixe a mais e não precisava de caça ou de outros produtos no momento, tal circunstância impedia qualquer tipo de transação ou de troca.

Assim, foi crescendo a necessidade da existência de um bem ou de alguns bens que pela sua utilidade geral e durabilidade interessassem a todos, independentemente das suas necessidades de momento. Estava-se ainda longe do vil metal – o dinheiro – e assim surgiu o gado principalmente o bovino e o sal, que passaram a constituir os primeiros tipos de moeda/mercadoria e que permitiriam aos homens fazer todo o género de trocas em qualquer momento.

Aqueles excedentes proporcionados pelo desenvolvimento da agricultura, criariam por arrasto a necessidade da responsabilização de uns tantos elementos da comunidade quer para a guarda dos bens excedentários, quer para a defesa do próprio grupo. Contudo, com este simples gesto os homens estavam a por em marcha a criação do próprio Estado com toda a complexidade de que se reveste hoje. Naturalmente de que ao longo dos séculos, o Estado acabaria por se transformar não só no defensor dos bens da comunidade, como também no defensor dos interesses e das ideias de quem lhe pagava: os donos dos bens.



E se reflectirmos um pouco mais, verificaremos que o Estado foi assumindo uma tal importância em todas as áreas, que se tornaria com o correr dos tempos no principal aparelho ideológico dos valores daquelas classes, construindo uma autêntica teia de influências que percorrem a sociedade até às entranhas, fazendo passar aqueles interesses particulares pelos interesses mais gerais de toda a comunidade.

De facto desde o Ensino aonde se começa a ensinar a cartilha, aos Meios de Comunicação Social criadores e propagandistas de falsos símbolos e ídolos tipo Sonho Americano (american way of life), aos Tribunais que julgam e condenam os prevaricadores, ao Exército e às Polícias que garantem a manutenção do sistema ou àqueles que prometem uma vida de felicidade e abastança no além, para os que sofrem cá na terra etc., etc., etc., é um nunca mais acabar de tentáculos que como um verdadeiro polvo abraçam e sufocam toda a comunidade.

Na realidade naquele processo de trocas primitivas e de funções várias que os diversos elementos da comunidade iam exercendo, os diferentes interesses em causa foram-se cristalizando e os homens foram-se dividindo, acabando uma boa parte da comunidade com o passar dos séculos por ficar sem nada para trocar a não ser a sua força de trabalho e assim, passaram a ser considerados eles próprios também uma mercadoria.



Era o início da escravatura. Vendiam-se as terras juntamente com os escravos, pois faziam parte do património. Contudo, num longo processo de muitas centenas senão milhares de anos a partir das grandes revoltas dos últimos séculos antes de Cristo, os escravos iniciariam a sua luta pela libertação completa do jugo dos Senhores e com o evoluir dos tempos os seus descendentes, socialmente já homens livres mas economicamente ainda dominados, foram trocando o único bem que tinham herdado – a sua força de trabalho – por um salário.

Se referimos este passado da alvorada da humanidade é porque aquelas duas moedas/mercadorias – o gado e o sal -- marcariam definitivamente todo o nosso arsenal de conceitos até aos nossos dias. Paga-se a quem trabalha com um salário, isto é nem mais nem menos do que simbolicamente com sal, pois o conceito de salário tem origem precisamente na palavra sal. Assim como a palavra gado que vem do latim pecus viria a dar conceitos como pecúnia/pecuniário (dinheiro), ou peculium (gado miúdo tipo ovelha) que viria a dar pecúlio, ou capital que vem de capita ou seja cabeça (de gado).

Ao fim destes milénios todos, claro que o Senhor Estado se tornou num velho gordo a rebentar pelas costuras, debochado e sem qualquer tipo de preconceitos pois já nem se encontra às escondidas com a sua Bela e Alta Finança, mas já se apresentam descaradamente de braço dado e à luz do dia. Basta referir essa Troika Financeira que anda por aí e que põe e dispõe como quer e lhe apetece, às Fundações e Institutos Públicos que nascem como cogumelos para os amigos do Poder, às diversas Empresas Públicas super-deficitárias ou às desastrosas Parcerias Público-Privadas, ao escabroso regabofe do BPN com ex-ministros de antigos governos e à Nacionalização do Buraco Financeiro pelo governo de então etc., etc., etc.

Ou então verifiquemos por curiosidade esse casamento Estado/Finança, analisando o momento actual e o corrupio de ex-ministros e ministros dos governos mais recentes – uns que partem outros que chegam – para as (ou das) grandes empresas ou grupos financeiros de referência nacionais e internacionais, para não mencionar as dezenas de tristes casos praticados pelos Senhores do Estado a que fomos assistindo ao longo destes anos por esse país fora. Enfim, de quatro em quatro anos lá se vão zangando as comadres e lá vamos sabendo mais umas quantas verdades, mas a realidade é que por lá vão continuando ora umas ora outras, sempre para bem do Povo e de Portugal claro.

Mas... já chega de falar de sucata e voltemos aos nossos homens da antiguidade. Estes pelo menos já não nos dão problemas!
Com a descoberta do metal, dar-se-ia um passo de gigante nas relações/transações entre os homens por apresentar enormes vantagens nas trocas e assim, foram substituídos como moeda/mercadoria quer o gado, quer o sal. Inicialmente o metal foi usado como moeda de troca no seu estado natural, principalmente o ouro e a prata.


Foram os gregos quem corporizou o conceito de moeda, dando-lhe a forma de moedas cunhadas com as características que têm hoje. As primeiras moedas cunhadas surgiram efectivamente no século VII a.C. na Grécia em ouro e em prata. Foi na Grécia também – berço da democracia e da civilização actual – os primeiros que compreenderam as fraquezas da natureza humana contrapondo aos poderes oligárquicos vigentes até então e com tendência a corromperem-se, o mais amplo poder do povo, constituindo dos poucos momentos da história do homem aonde se chegou a praticar a democracia directa apesar de algumas limitações culturais da época, visto que estavam excluídos de tais direitos as mulheres, os escravos e os estrangeiros. E isto há quase 3 milénios atrás imagine-se!

Até parece que a Europa mais conservadora com epicentro na Alemanha nunca mais lhes perdoaria a ousadia apesar de tanto tempo passado, sofisticando-lhe os produtos que eles próprios tinham criado com tanta imaginação para facilitar as relações entre os homens e fazendo o seu ajuste de contas alguns milénios depois, dando-lhes a beber o veneno -- agora muito mais refinado -- que eles próprios tinham inventado. Ironia do destino!

Finalmente na Idade Média era costume guardarem-se os valores nos ourives que negociavam ouro e prata passando este, certo tipo de prova escrita daquela operação ou seja um recibo. Estes recibos passaram a ser usados como formas de pagamento. Estava descoberta a nota ou seja o papel/moeda.

Vem toda esta longa conversa a propósito de sociedades aonde a circulação de dinheiro é escassa e nas formas que os homens foram inventando e usando nas suas relações/transações. Em Alcoutim dos anos 40/50 e 60 o dinheiro era um bem escasso e pouco circulava na altura. Lembro-me de alguns camponeses pagarem as suas dívidas do ano na mercearia apenas depois da venda das colheitas. Verdade seja dita que a inflação era uma doença inexistente na época e assim eram permitidos créditos de quase um ano.

De facto havia relações de trabalho muito estranhas naqueles tempos em Alcoutim e as formas de pagamento tinham muitas vezes certas especificidades também. Vejam só: era habitual pagar-se a quem apanhava a azeitona, a alfarroba mas principalmente a amêndoa ao quarto (penso que ainda se chegou a pagar ao quinto), depois ao terço e por último já se pagava a meias. Isto quer dizer que um quarto, um terço ou metade da produção era paga em produto àqueles a quem se tivesse contratado a apanha respectiva. E a percentagem ia variando e aumentando para os jornaleiros na medida em que a oferta de mão-de-obra ia diminuindo com o correr dos tempos, crescendo naturalmente a parte dos apanhadores/jornaleiros até se chegar a metade para cada uma das partes. E note-se que se tratava de pagamento a jornaleiros e não a caseiros ou rendeiros o que já seria mais compreensível.

Mas aquela relação de pagamento não se ficaria por ali. De facto quando a lei da oferta e da procura entraram francamente em ruptura com menos mão-de-obra disponível, inverteu-se o processo, começando o proprietário por receber primeiro ao terço, depois ao quarto e agora naturalmente já ninguém recebe nada, pois ninguém já apanha o que quer que seja, exceptuando uma ou outra azeitona claro. Era a lógica do sistema a funcionar em pleno, embora paga em géneros. Contudo, se analisarmos este tipo de pagamento concluiremos que era bastante cínico, pois criava a falsa ilusão de que todos eram proprietários e assim, quanto mais depressa se apanhasse a amêndoa ou a azeitona mais rendia o dia! Ficava contente o jornaleiro que ganhava mais, ficava descansado o patrão que não se preocupava com a produtividade no trabalho.


Desculpem-me lá os meus queridos conterrâneos, mas sempre estive convencido de que em Alcoutim nunca abundou muita iniciativa empresarial no sentido de fazer novas coisas, conceber novas actividades, abrir novos horizontes etc., etc., etc. Claro de que não posso colocar o rabinho de fora e terei que me penitenciar também, pois nunca fiz nada em Alcoutim. Afinal de contas sou um alcoutenejo de “puro sangue”, mas isto não invalida que não tenhamos uma opinião crítica sobre nós próprios.

Pelo contrário, existia uma imaginação prodigiosa para criar mais valias, que não se ficava atrás do Champalimaud mais refinado da época. O princípio do sistema estava bem assimilado não há dúvida, faltava apenas dar o 2º passo: criar novas actividades. Analisemos só este requinte quando aquela forma de pagamento em produto referido anteriormente, começava a dar raia em desfavor do proprietário. Este baralhava de novo os dados do problema inventando inovadoras propostas e confundindo completamente o comum dos mortais: o proprietário “dava” as suas colheitas a quem contratasse a apanha e “comprava” posteriormente ao jornaleiro por exemplo a amêndoa já descascada a 1 escudo o quilo se bem me lembro! Extraordinário refinamento que o capitalismo mais evoluído só lá chegaria com algo semelhante em termos de prática massiva nos anos sessenta: o pagamento à peça!

Trás-os-Montes e as Beiras são duas regiões que me parecem estrutural e socialmente muito semelhantes a Alcoutim. Por isso procurei indagar junto de alguns beirões e transmontanos amigos conhecedores da vida nos anos 50/60 naquelas regiões, mas que se mostraram completamente desconhecedores destas relações de trabalho que se praticavam em Alcoutim nos anos 40/50 e 60 do século passado.

Existiram de facto naquelas regiões práticas comunitárias de entreajuda, naturalmente por se tratar de pequena propriedade, a que chamavam de “torna-jeira” ou “tornas” e que consistiam num “contracto pelo qual os jornaleiros se ajudavam mutuamente no trabalho da terra” (Grande Dicionário da Porto Editora). Fica a pergunta: serão genuinamente alcoutenejas ou algarvias no mínimo, algumas relações de trabalho que se praticaram em Alcoutim em meados do século passado?