segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Peter o inglês que veio para ficar...

Pequena nota
Nunca falámos com Peter ainda que quando nos cruzávamos havia sempre um aceno de cabeça como saudação.
Com a passagem dos anos, tornou-se uma pessoa carismática de Alcoutim, não tenho sobre isso a menor dúvida.
A quando do seu falecimento fizemos referência ao facto na nossa rubrica "Viagens sem Regresso" com os poucos elementos que dispúnhamos, mas entendíamos que era necessário escrever mais alguma coisa.
Como sabíamos que a nossa amiga, Dra. Alexandra Gradim cimentou uma amizade com Peter Francis, convidámo-la a escrever esse texto.
É isso que temos o prazer de apresentar aos nossos leitores agradecendo à Dra. Alexandra Gradim o seu contributo.


JV





Escreve

Alexandra Gradim




Se estivesse entre nós, Peter completaria hoje 77 anos. Os nossos destinos de pára-quedistas em Alcoutim (designação dada pelos alcoutenejos, àqueles que assentam “arraiais” na sua terra) cruzaram-se no seu barco Golden Miller, aportado no cais fluvial, por entre o entusiasmo infantil de duas dezenas de criaturas que procuravam comunicar na sua língua.

[O barco Golden Miller no cais de Alcoutim, que serviu de residência a Peter durante os anos 90 e inícios do novo século XXI.]

Este exercício lectivo ocorrido em inícios de 1993, cerca de um ano após a sua chegada à vila, foi o despoletar de uma longa e enriquecedora amizade partilhada em redor da arqueologia, da paixão por Alcoutim, do desvendar do Guadiana e dos gostos particulares de cada um que, claro está, por vezes convergiam e outras se descobriam.

O capitão Peter Francis Carey, o peculiar inglês que chegou a Alcoutim não como mero turista de passagem, mas que por aqui foi ficando, intrigou sem dúvida os habitantes da vila que, no entanto, o foram paulatinamente aceitando como mais um dos seus residentes. Este foi aliás o sentimento que me foi transmitido, desde aquela primeira experiência com a população mais jovem de Alcoutim e continuadamente, depois, sempre que o tema surgia naturalmente em qualquer conversa de circunstância.

O facto de Peter se recusar a falar outro idioma que não fosse o seu, dificultava, naturalmente, o contacto com os demais. Limitava-se a comunicar num dialecto próprio, à base de pouco mais do que monossílabos portugueses misturados com um inglês gutural, que compunha com alguns gestos que entendia serem suficientes para transmitir o restritamente necessário à sua sobrevivência. A sua simpatia e sorriso sincero, aliado ao facto de todos nós o imaginarmos em fato vermelho e a distribuir presentes por aí, tratavam do resto e ajudaram sem dúvida a que fosse frequente, ao longo dos anos, eu escutar por parte da população palavras que denotavam uma espontânea preocupação que só as pequenas comunidades devotam a um dos seus.

[Peter no seu barco Golden Miller (fotos cedidas pela sua filha Claire).]

No entanto poucos saberiam ao certo, o que o trouxe até Alcoutim, o que o fez persistir em ficar ou porque decidiu adoptar esta terra como o seu derradeiro pouso. Menos ainda conheceriam o seu humor mordaz, a sua habilidade para os trabalhos em madeira ou o seu gosto pela música clássica! Esta sua paixão levava-o a improvisar brilhantemente um violino numa serra de madeira. Recordo divertida a forma como arrancava prodigiosamente à contorcida lâmina os mesmos sons agudos e melodiosos do instrumento, do qual apenas se reconhecia o arco que utilizava.

Uniu-nos provavelmente o mesmo espírito curioso que cada um, à sua maneira, orientava para a área de investigação que mais lhe interessava. A dele era sem dúvida o Titanic. Esta quimera levou-o a reunir uma considerável documentação, extraída em infindáveis horas de pesquisa em bibliotecas da Inglaterra e Holanda à qual juntou a conseguida através da troca de correspondência que mantinha com outros investigadores e curiosos do tema. Chegou mesmo a publicar em boletins da especialidade.

O seu espírito de lobo do mar, adquirido pelo entranhar de cinco décadas na marinha mercante, impuseram lhe o culto de um certo isolamento, bem mais aparente do que real, pois era um excelente conversador, culto e surpreendentemente conhecedor de áreas tão diversas como pintura, mecânica, arqueologia, biologia ou arquitectura, entre outras.

Foi a incumbência de um serviço que o direccionou rumo a Alcoutim, foram as insondáveis incongruências do destino que o amarraram ao Guadiana e lhe entranharam cada vez mais profundamente a convicção de que a vila de Alcoutim seria a sua derradeira morada! Assim sucedeu no início de um Outono de má memória, em que a dele se inscreveu como a do primeiro inglês a ser sepultado no actual cemitério da vila.