quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O cemitério da Vila de Alcoutim - da origem aos nossos dias

(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 10 e 17 DE MARÇO DE 1988)


[Cemitério da Vila de Alcoutim. Des. de JV]
Cemitério, Campo Santo, “Jardim das Tabuletas, acabam por ser sinónimos, dependendo de quem neles fala ou das circunstâncias em que o faz.

Templos, palácios, castelos, fortalezas e outras obras de arte, aparecem desenvolvidas noutros temas, mas não é vulgar, a nível individual, encontrarmos o mesmo tratamento para os cemitérios.

Habituado desde criança a visitá-los, sempre nos causaram curiosidade aqueles redutos, normalmente cercados de altos muros, desde o misticismo, passando pela monumentalidade, traduzida em sepulturas, jazigos e obeliscos, até aos usos e costumes que rodeiam os enterramentos.

Todos os cemitérios têm a sua história e um cicerone leva-nos junto do artístico mausoléu, do monumento às vítimas disto ou daquilo, de sepulturas que encerram verdadeiros dramas, muitas vezes figurados na decoração, até aos túmulos e sepulturas rasas, de figuras que ficaram na história do pais.

Até cerca da primeira metade do século passado, os enterramentos faziam-se no interior dos templos ou nos adros que lhe pertenciam. Esta prática transformou-se em dever de religião e a ela não foi estranha também a credulidade supersticiosa.

Vem de longe a condenação de tal prática, tendo saído legislação nos princípios do século XIX, nesse sentido.

Foi contudo letra morta e só com a implantação do liberalismo e por decreto de 21 de Setembro de 1835, se criaram os cemitérios públicos em todas as povoações, determinando-se que “cada corpo devia ser enterrado em cova separada”.

É, porém, o Ministro do Reino, Costa Cabral, que em 1844 faz publicar diploma em que determina “que é expressamente proibido enterrar os mortos dentro de qualquer igreja ou capela da freguesia ou concelho, onde houver cemitério público”.

Como várias autarquias tivessem feito saber ao Governo que não possuíam receitas para os construir, legislou-se no sentido de garantir meios para tal.

São conhecidas as revoltas ditas populares que se deram com o pretexto do não enterramento nos templos e foram necessários mais de dez anos para que as populações começassem a aceitar os cemitérios públicos.

[Capela de S. Sebastião vista por Duarte de Armas, séc. XVI]
Para a sua instalação procuravam-se cercas de antigos conventos e outros terrenos que eram património da igreja. Além de se olhar para o aspecto religioso, evitando maiores choques, não era menos considerado o económico.

O decreto nº 13 337 de 25 de Março de 1927, veio estabelecer praticamente as regras dos nossos dias, competindo às autarquias locais a fixação de taxas e outras determinações previstas naquele diploma e legislação posterior. (1)

Depois deste pequeno intróito, para nos situar no tempo e no espaço, procuraremos desenvolver o que se passou no concelho de Alcoutim, com incidência na vila.

Em 1518 sabe-se que … diante da porta primcipall das ilhargas da parede da parte do norte e do sul estaa ho adro da dita igreja (do Salvador) onde se emterrão os defuntos. (2)

Também o adro da Capela de Nª Sª da Conceição, nesta época, servia para enterramentos – e da redor da dita irmida (Capela de Nª Sª da Conceição) estaa o adro dela em que se enterram os defuntos. (3)

Quando a igreja da Misericórdia foi extorquida do seu altar, de pintura marmórea, sofrendo obras que a obliteraram, assistimos à remoção do pavimento, que se encontrava repleto de sepulturas.

É bem cedo que a municipalidade se preocupa com a criação de cemitérios públicos, pois, em sessão de 26 de Julho de 1836, é deliberado oficiar às Juntas de Paróquia do concelho para que de 16 de Agosto em diante começassem a obra dos cemitérios, visto ser o tempo mais próprio. (4)

Não teria dado resultado desejado pois, quatro anos depois, a edilidade decidiu que se passassem as ordens mais determinantes às Juntas de Paróquia para fazerem os cemitérios no prazo de três meses, excepto o de Martim Longo, que deverá aprontar-se dentro de um mês. (5)

Apesar disso, e no que se refere à paróquia de Alcoutim, só em 22 de Dezembro de 1843se realiza uma reunião na “Capella de Nª Sª da Conceição” com os principais cidadãos da vila e da freguesia para resolver o problema.

[Capela do cemitério. Foto JV, 1989]
Além da Câmara, presidida por Paulo José Lopes, encontrava-se o Administrador do Concelho, António Joaquim Pinto, o Prior, António José Madeira de Freitas (tio) e o Ajudador desta vila, a Junta de Paróquia, constituída por Joaquim Madeira, José António Torres, António Joaquim Botelho e Pedro José Roiz e os seguintes cidadãos: Francisco José de Barros e Manuel José da Trindade, como representantes da vila, José Maria Cravo e José Martins Capelo, das Cortes Pereiras, José da Palma de Afonso Vicente, Manuel Lourenço Joana do Vascão, Manuel Conceição, de Sta. Marta, José Nobre, da Corte da Seda, Francisco Vicente, do Torneiro, José Romeira, Manuel Gomes e Domingos Vaz Reis, dos Balurcos, Manuel Dias, da Palmeira, Manuel Henriques, das Laranjeiras, João Martins dos Guerreiros do Rio e António da Palma, do Álamo.

Como se verifica só a vila, Balurcos e Cortes Pereiras possuíam mais de um representante. Os Balurcos e as Cortes Pereiras constituem aglomerados de “montes”.
A reunião tinha por fim tomar humma medida que obste ao prejuízo que ameação os enterramentos dos defuntos nos templos, aonde já não há sepulturas vagas para os continuarem a receber e aonde a lei e as autarquias não consentem que se enterre…

Depois da explicação minuciosa e ponderada do Presidente da Câmara e tomando em conta a urgência de um tão transcendente negócio e os meios de pronto providenciar sobre o repouso legal e decente para os finados, se acordou unanimemente de fazer um cemitério em o sítio de S. Sebastião, ao sul da Ermida, pegado à mesma.

Para o cemitério se fazer era necessário concorrerem com a importância de 80$000 réis todos os fogos da freguesia que, no último lançamento ou rol da côngrua do Prior e Ajudador, pagavam de 950 réis para cima, pagando cada um na proporção dos seus haveres.

Os trabalhos braçais seriam feitos pelos fogos que pagavam verba inferior àquela, entrando neste serviço o das cavalgaduras.

Deliberou-se também que os trabalhadores seriam dirigidos por uma comissão composta pelo Presidente da Câmara, Administrador do Concelho e Prior da Freguesia, à qual cumpria levar a efeito a feitura do dito cemitério, o mais depressa possível, fazendo chamar para o serviço braçal ou habitantes competentes ou suas cavalgaduras, por turnos.

As verbas seriam arrecadadas por José Guerreiro, que para o efeito foi nomeado, competindo-lhe também mandar pagar os utensílios necessários e materiais, pagando aos pedreiros e mais jornais, dando depois conta de tudo.

Acordaram os participantes em nomear como olheiro da obra, José Gregório de Andrade, que era oficial de diligências da Câmara e que veio a falecer em Julho de 1844.

Ao habitante que não trabalhasse com assiduidade e cuidado no dia ou dias que lhe pertencessem, seria tal trabalho considerado nulo.

Deliberou-se, finalmente, que de tudo fosse dado conhecimento ao Governador Civil, pedindo autorização para fazer a derrama e poder obrigar os trabalhadores a dar até três dias de trabalho. (6)

Pelo que fica dito, também o cemitério alcoutenejo foi construído num lugar “sagrado”, terreno contíguo a uma pequena ermida, ou talvez mais correctamente, no adro alargado dessa ermida, situado bastante para além do recinto amuralhado.

Verificamos que junto à porta da capela do cemitério, que tudo indica ser a anterior ermida de S. Sebastião, se encontram pedras sepulcrais (sepulturas) tal como eram feitas nos interiores e adros dos templos. São pertença de famílias gradas da terra e têm carácter vitalício.

Em princípios de 1846 já o cemitério devia estar em funcionamento, visto ser pedido à Câmara autorização para cercar um terreno que fica junto ao rio entre o cercado de Maria Filipa, o cemitério e o cercado de José Pedro Aragão. (7)

Em 1849 levanta-se polémica entre o prior e a Câmara com intervenção do Governo Civil, por causa da concessão de um terreno que, segundo o prior, apertava muito o caminho para o cemitério, no sítio dos Lagares. (8)

O cemitério passa da responsabilidade da Junta de Paróquia para a da Câmara Municipal em 1 de Fevereiro de 1893.

A partir do núcleo inicial, constituído como já dissemos, pelo terreno contíguo e a sul da capela, o cemitério tem sido alargado. A primeira fase teria sido a que se situa a norte e é nela que se constroem as primeiras “catacumbas”.

Qualquer dicionário apresenta-nos o significado deste termo um pouco diferente do que tem em Alcoutim. Aqui, a catacumba, ou “forno”, significa uma espécie de gavetão onde é depositada a urna. Aéreas, são feitas em filas sobrepostas, sendo as primitivas de “barro” e ladrilho, com tecto levemente abaulado. Agora, impera o cimento. Secção rectangular, variando o preço conforme a localização. Nas antigas, tapavam a entrada com uma lápide de epitáfio simples. Nas actuais, válidas por vinte anos, há quem mande tapar a urna com uma pequena parede, reservando o espaço restante para a colocação de fotografias, epitáfios, lamparinas e outros objectos normalmente de uso religioso. Portas gradeadas de ferro ou alumínio protegem e decoram a entrada.

Há no cemitério um único jazigo, já construído no nosso século. Não se vendem sepulturas e os ossários são do tipo das catacumbas.

Duas ou três sepulturas antigas têm pequenos obeliscos.

O cemitério é vedado por altos muros, como manda a legislação e possui dois ciprestes, árvores que simbolizam a morte, a tristeza e a dor.

O portão de acesso é artística peça de ferro forjado, enquadrado em obra de alvenaria em que se destaca uma placa de pedra com inscrições de um pensamento alusivo ao local.
[Sepultura de António Pedro Teixeira. Foto JV, 1989]
Não esquece que uma das primeiras medidas tomadas pela comissão administrativa da Câmara Municipal, após o 25 de Abril, foi a feitura de catacumbas, que já não existiam, para as quais o cofre municipal não dispunha de verba. Valeu na circunstância o auxílio do Governo Civil.

Após aquela data o cemitério voltou a ser aumentado e presentemente mostra-se bem cuidado.

Aqui repousam alguns filhos dilectos, tanto pelo nascimento, como pelo coração. Desta terra, alguns vindos de terras distantes, a seu manifesto desejo ou de seus familiares.

Referir o culto local dos mortos, ainda que completasse o tema iria alongar desmesuradamente este escrito.

Terminaremos dizendo que os povos que antes de nós povoaram esta região deixaram vestígios funerários, formando uma necrópole recentemente encontrada quando dos trabalhos da estrada marginal, mesmo junto ao caminho velho (via romana?), no barrando do Vale de Condes. Estavam visíveis três ou quatro sepulturas e o local merecia a abordagem de peritos.


NOTAS
(1)-Elementos base recolhidos no Dicionário da História de Portugal, dirigido por Joel Serrão, na História de Portugal, de J Veríssimo Serrão e no Dicionário Enciclopédico Lello.

(2)-Visitações da Ordem de Santiago no Sotavento Algarvio, Hugo Cavaco, Edição da C.M.V.R.S.António, 1987, pág. 43.

(3)-Idem. Ibidem, pág. 16

(4)-Livro das Actas da C.M.A., nº 1, de 8 de Junho de 1834 a 29 de Abril de 1841.

(5)-Idem, Sessão de 6 de Agosto de 1840.

(6)-Livro dos acórdãos da CMA, de Junho de 1841 a Dezembro de 1849.

(7)-Acta de 23 de Março.