sábado, 8 de janeiro de 2011

Luís Cunha - 1º Centenário do seu Nascimento. Lembrando um Amigo



Passa hoje o 1º Centenário Natalício de Luís Cunha pois nasceu na pequena vila de Alcoutim, nas margens do Guadiana em 8 de Janeiro de 1911, tendo, por isso, cerca de três meses quando se deu a Implantação da República.

Não vamos hoje repetir a nota biográfica, mas sim algo de pessoal que a amizade fomentou.

Quando tomámos posse das nossas funções em Alcoutim, em 13 de Junho de 1967, Luís Cunha tinha sido há pouco investido nas funções de Presidente da Câmara Municipal.

Competia-nos nessa altura fazer um relatório no qual se devia fazer entre outras, alusão ao estado das instalações onde funcionava a repartição e propor a resolução de algum problema mais premente. Era feito em triplicado e um exemplar enviado ao Presidente da Câmara, entidade a quem competia fornecer as instalações.

Constituídas por uma única divisão e em que um balcão em macacaúba e de alçado de vidro martelado fazia a divisão de acesso ao público.

Entre as deficiências que encontrámos, a falta de instalações sanitárias e o desnível do chão (inclinado), considerámos absolutamente necessário o arranjo do tampo da nossa secretária que até era do modelo oficial, pois encontrava-se encarquilhado de tal maneira que não se podia colocar a máquina de escrever que fomos “obrigados” a adquirir pois os serviços não a forneciam.
[Paços do Concelho. Des. de JV]
Quando o Presidente da Câmara, que residia no concelho de Faro, veio a Alcoutim, o que fazia com frequência para dar despacho à correspondência e realizar as reuniões camarárias, tomou conhecimento do nosso relatório, teve a amabilidade de se deslocar à repartição para nos cumprimentar, o que possivelmente qualquer outro não teria feito, dizendo-nos que não ia ali para verificar as anomalias encontradas pois elas eram reais.

- Tem toda a razão. A Câmara não tem dinheiro para nada, só tem a porta aberta. Mas o dinheiro não é problema pois eu pago do meu bolso, o pior de tudo é que não há quem o faça.

Dias depois aparece-nos no nosso local de trabalho acompanhado de um senhor que apesar de já não trabalhar na profissão se tinha disponibilizado a reparar o tampo da secretária, justificando que não podia dizer não a um velho e bom amigo. Teve de haver, contudo, um compromisso da nossa parte para orientar o trabalho.

Quanto a nós, a única coisa que queríamos era ter o tampo direito para poder escrever tanto à mão como na máquina.

Sugerimos, por ser barato e fácil de aplicar, um tampo de madeira prensada, mas o homem nunca tinha trabalho em tal, pelo que o tranquilizámos dizendo que era tudo muito fácil, bastaria cortar à medida e colar, passando depois um pouco de lixa e vioscene para lhe dar a cor.

Nunca nos esquecemos daquele senhor já entrado na idade e que era dos montes do rio. Ainda sabemos onde morava, bem perto do rio.

Neste primeiro contacto, o Senhor Presidente da Câmara pediu-nos para o tratar pelo nome pois era assim que o tratavam e se sentia bem.
[Casa onde viveu a Família Cunha]
Quando estava em Alcoutim não dispensava o seu cafezinho depois do almoço no único café da terra, de J.B.Guerreiro o que igualmente acontecia connosco. Naturalmente sentávamo-nos na mesma mesa e estabelecia-se uma conversação natural que envolvia as condições da vila, que se encontrava completamente parada no tempo.

Lembramo-nos perfeitamente de lhe dizer que nunca nos tinha passado pela cabeça que existisse uma sede de concelho como Alcoutim e que estávamos arrependidíssimos de ter optado por ela, já que havia outra hipótese na altura, à escolha, que conhecíamos e que nada tinha a ver com Alcoutim.

Na conversa, ia-nos dizendo que efectivamente era assim como nós dizíamos pois as carências eram de toda a ordem mas que eu ainda não conhecia o outro lado das coisas pois havia outros encantos que naturalmente ainda não tínhamos descoberto mas que havíamos de chegar lá. Em contrapartida íamos-lhe dizendo que logo que passasse o tempo legal e nos fosse possível pediríamos a nossa transferência, como fizeram, pelo menos, os nossos dez últimos antecessores.

Usando a vasta cultura que possuía começou a explicar-nos primeiro a fundação de Alcoutim as características do seu povo, as razões por que eram assim, como era a vida, chamava-nos a atenção para esta e aquela pessoa onde via ainda características árabes e era muito fácil compreender as suas explicações tão claras se tornavam.

Frisava sempre a autodefesa como uma das consequências do isolamento e quando as estradas chegaram a Alcoutim, a sua posição privilegiada de entreposto comercial ruiu como um castelo de cartas.

Dizia-nos porque os ouvia, que os velhos da sua meninice, inteiramente passada em Alcoutim, ainda que analfabetos, sabiam explicar todas as vivências e até o aparecimento das povoações.

Os usos e as tradições locais, de que era grande respeitador, conhecia e explicava-os com razões plausíveis.

Foi a ele que ouvimos contar pela primeira vez os casamentos à moda antiga e que sabia interpretar com profundidade. Quando procurámos mais tarde falar no assunto com outras pessoas que o conheceram bem, foi uma completa desilusão, pois raras eram as que o queriam abordar, alteravam as coisas dizendo que isso já não se usava, era dos tempos antigos, etc. etc.

Também foi a ele que ouvimos pela primeira vez a lenda da moira do castelo velho.

Antes do diálogo, disputávamos o café no jogo do “trinta e um”. Era muito engraçado, pois quase sempre se perdia “à forçada”, visto que conhecíamos bem a maneira de jogar que nos ia denunciando os números. Quando chegávamos à forçada”, era uma alegria pois durante o jogo tínhamos descoberto os números um do outro. Foi jogo que só jogámos em Alcoutim e praticamente com ele.

Luís Cunha era um apreciador dos pratos regionais de que as irmãs eram exímias executantes.

Uma das distracções que tinha, era ir pescar para o cais velho, onde muitas vezes nos encontrávamos e a conversa se desenrolava. Se na maior parte das vezes se reportava às vivências alcoutenejas, outras transportavam-no a Moçambique, onde fez toda a sua carreira profissional. Contou-nos coisas que ainda hoje recordamos e que são bem elucidativas da sua maneira de ser. Dizia-nos, por vezes, se fosse agora, já não fazia isso o que eu contrapunha dizendo-lhe que voltaria a fazer o mesmo, pois o seu alto estofo moral e social levou-o sempre à prática do bem.

Recordou-nos as brincadeiras de criança e falava dos seus amigos e das características que já apresentavam.

Não vamos aqui referir nenhuma das altruístas atitudes que tomou na sua vida, aquelas que conhecemos e às quais nunca se referiu. Tomámos conhecimento delas através de outras pessoas que as conheciam e que no-las transmitiram.

[Alcoutim. Praça da República nos anos 60 do século passado]

Confessava-nos que não tinha nenhuma vocação para exercer o lugar de presidente da Câmara, funções que considerava de “verbo-de-encher”, visto não haver dinheiro para nada, a não ser para ter a porta aberta da Câmara. O pouco que se fazia, constituía uma dádiva do poder central que em muitas situações tinham de ser esmolados aqui e ali, funções que naturalmente Luís Cunha era incapaz de realizar.

Nunca nos falou nas condições em que tinha sido atirado para o exercício dessas funções.

Quem conheceu o ambiente foi fácil de concluir que Luís Cunha serviu apenas de elo de charneira no xadrez político local.

Já algumas vezes temos escrito que Luís Cunha foi o alcoutenejo mais culto que encontrámos.

Em sua memória não podíamos deixar de escrever estas palavras na passagem do 1º Centenário do seu Nascimento, terminando com a seguinte frase:

EM ALCOUTIM, LUÍS CUNHA FAZIA A DIFERENÇA.