quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Apesar do frio, hoje vou abanhar-me à Ribeira!






Escreve


Amílcar Felício




[Ribeira de Cadavais. Pego das Portas. Foto JV]

Nos nossos dias em Alcoutim, toda a gente tem água corrente em casa e boas casas de banho naturalmente. Mas nem sempre foi assim. Por contraditório que pareça com tanta água no rio e na ribeira, a verdade é que em nossas casas até à década de sessenta aquele líquido sempre foi um bem escasso. Na realidade eram os aguadeiros como o Ti Zé Brandão ou o Ti Xico Barão que pelas manhãzinhas iam resolvendo o problema de cada família. Ou então eram as próprias mulheres e moçoilas que pela tardinha em rancho e amena cavaqueira, lá iam cantando ou falando dos seus namoricos com o cântaro ou a enfusa de barro à cabeça ou ao quadril, buscar o precioso líquido ao Pocinho ou ao Poço das Figueiras.

Vasculho esses tempos no baú das minhas memórias e ainda me lembro de ver Alcoutim transformado na década de sessenta num autêntico buraco, por causa do saneamento básico. Lembro ainda a provocação que alguns faziam insistentemente ao amigo António do Brejo naquela época: “Oh amigo António, por que é que o amigo não vai também abrir umas valas para ganhar uns tostões” (?), perguntavam-lhe os “conselheiros”, ao que ele respondia sempre ao seu melhor estilo e no mesmo tom cínico e amigável dos provocadores: mas óh amigo (!) se eu não perdi ali nada, para que é que eu vou para ali a fazer figura de parvo de rabo p´ró ar a abrir buracos?

Os banhos tiveram sempre um papel importante na vida dos povos, com altos e baixos no Ocidente é certo, mas sem oscilações de maior no Oriente. Basta referir o conhecido banho turco herdado posteriormente pelo árabes. Assim, desde purificador da alma há 5000 anos no Egipto chegando a tomar-se 2 e 3 banhos por dia, a promotor de vida saudável e de educação da juventude há 3000 anos na antiga Grécia com a construção de banhos públicos, o banho atingiria o seu apogeu com os romanos e as suas famosas termas, que influenciados pela cultura grega, transformariam o banho num ritual público de convívio, de negócio e de luxúria, verdadeiros resorts dos nossos dias com massagens, sauna, restaurantes, jardins etc.

Contudo, os banhos públicos entrariam em franco declínio depois da queda do Império Romano e tornar-se-iam até fonte de pecado na idade média tendo sido proibidos pela Igreja, com o argumento “cientifico” de que a água para lá de amolecer a alma, dilatava os poros da pele por aonde entravam as doenças. Posteriormente com o iluminismo nos séculos XVII e XVIII deu-se um certo revigoramento do hábito do banho, considerando-se inclusive que a falta de higiene teria sido uma das razões da propagação de diversas pestes na idade média. Os banhos popularizar-se-iam posteriormente no Ocidente já quase nos meados do século XX, instituindo-se o hábito de se tomar banho aos sábados. Nos nossos dias contudo, ganhou foros de autêntico Senhor estando muito ligado à higiene diária, mas o que é facto é de que começa a ser posto em causa novamente.

Mas nos anos cinquenta e sessenta os alcoutenejos não íam para a Ribeira apenas para nadar. A gente ia abanhar-se na Ribeira. Eu sempre entendi este conceito alcoutenejo do abanhar-se não como uma fórmula do actual 2x1 (dois em um) tão publicitado por muitos produtos dos nossos dias, mas seguramente para aí de uns 4x1 (quatro em um), pois para além do exercício físico, da aprendizagem da natação e do convívio social, servia muitas vezes também para a higiene corporal. Transformávamos aquela Ribeira numa autêntica terma romana! Mas como os tempos não param, a velha Ribeira actualmente caíu em desuso e agora triste, suja e abandonada, foi destronada por um velho e enrugado Pego travestido de praia, a chamada Praia do Pego Fundo, embora para mim sempre que a vejo, continue a ser sempre a minha Rainha.

[Eucalipto da boca da Ribeira. Foto JV, 2010] Puxo a memória atrás e recordo o ritual das 5 horas da tarde por altura das marés vivas. Eram as mães, as tias, as primas, as irmãs que qual banho romano, ali se juntavam em magote por baixo das passadeiras, pois até aos 10 ou 12 anos era por ali a Escola de Natação da miudagem de Alcoutim. Naturalmente que as Senhoras e as Meninas também aproveitavam o momento para um pouco de exercício e uma lavagem mais a preceito, dentro das suas combinações que eram os fatos de banho femininos da época e que depois de molhadas e coladas aos corpos, mais pareciam belas estátuas ambulantes que muitas vezes despertavam os nossos olhares marotos e adolescentes.

Havia sempre um “professor” mais velho naturalmente, que no meu caso foi o meu compadre António da Teresa, ou um familiar mais responsável que com as mãos no nosso peito nos ía dando as aulas de natação e assim ensinando a flutuar: vá bate os pés com força... mexe os braços agora... agora bate os pés e os braços ao mesmo tempo... até que uma vez por outra nos largavam até sentirmos que podíamos flutuar sozinhos. Já numa fase mais adiantada do “curso” ajudavam-nos a manter-nos à tona apenas com a mão por baixo do queixo, o que dava uma autonomia quase completa ao aprendiz de nadador e a autoconfiança necessária. Chegávamos assim ao final do “curso”. Havia também quem utilizasse o método da corda e que se punha na margem da Ribeira sempre atento com a corda na mão, para o caso de acontecer alguma percalço e assim puxar rapidamente o aprendiz de nadador.

Depois já com alguma experiência, passava-se então para o Esteiro da Tia Libânia junto ao eucalipto até aos 14 ou 15 anos e só depois nos era atribuído o salvo conduto para os banhos no Guadiana, pois o Guadiana impunha respeito a todos, quer pela sua imensidão relativamente à Ribeira e à profundidade que nós nem sabíamos aonde acabava, quer possivelmente também pela frequência das mortes por afogamento que aconteciam na altura. Assim, só nos atrevíamos a enfrentá-lo cara a cara já depois de uma certa tarimba na Ribeira. Para se fazer uma ideia da respeitabilidade que nos merecia o Guadiana, basta referir que até aos meus 13 ou 14 anos, para mim Alcoutim acabava precisamente aonde começava a Praça. A partir dali era zona proibida tipo Vietname, aonde eu religiosamente nunca punha os pés.

[Ribeira de Cadavais. Antigo Pego Fundo. Foto JV, 1989]

Mas era na ribeira ou no rio que muitos alcoutenejos aproveitavam para dar para além de umas braçadas, uma lavagem mais a preceito. De resto era mais um tirar da ramela no dia-a-dia. Ainda me lembro em miúdo de ouvir a minha vizinha Gertrudes, esposa do Ti Zé Emídio comentando entre as mulheres: “ai mulheres, quando tomo banho os primeiros 15 dias sinto-me tão bem”! Em minha casa era a minha mãe a generala quem determinava a altura dos banhos. Dizia ela para o meu avô quando era chegado o momento: “vá lá Ti António Joaquim que está na altura de pensar em tomar banho”! “Mas tu endoideceste mulher (!), respondia ele sempre azedo, ainda do último eu não me enxuguei”! Certa manhã o meu amigo Zé “Patarroxa” filho do Lázaro e da Ana, soube que o professor Amaral tinha ido de urgência a Faro sem ter tido oportunidade de informar o pessoal a tempo, apanhando-nos assim desprevenidos. Esgalgado, corre aflito a minha casa gritando pela minha mãe: “Dª Belmiiiiira (!), Dª Belmiiiiira (!), diga ao seu Amílcar para não lavar a cara, que hoje não há escola”! Era assim naqueles tempos. Mas parece que os alcoutenejos não estavam errados de todo, sabem?

Efectivamente, existe actualmente um forte movimento nos Estados Unidos contra o banho diário, dizendo-se que até fará mal à saúde e defendendo os seus activistas de que só tomam banho quando lhes apetece. Vocês querem lá ver que os alcoutenejos dos anos cinquenta e sessenta é que tinham razão?

VOTOS DE BOAS FESTAS PARA TODOS OS ALCOUTENEJOS E LEITORES DO ALCOUTIM LIVRE E UM BOM BANHO DE CHAMPANHE PARA 2011 PARA AQUECERMOS A ALMA!!! VALHA-NOS AO MENOS ISSO!!!