sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Uma estrada marginal ligando Alcoutim a Castro Marim oferecia extensa zona venatória ao turismo do Algarve

(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 7 DE ABRIL DE 1973)




Escreve


Luís Cunha




O moderno cais de Alcoutim, onde podem acostar barcos de mais de duas mil toneladas, veio como “sopas depois de almoço”.

O seu período de actividade, breve como as rosas de Malherb, reduziu-se, quando muito, a uma década.

Cerca de cinquenta metros a montante, o outro cais, velhinho, desempenhara com garbo as suas funções desde tempos imemoriais, e se na sua tardia aposentação, muito depois da idade aconselhável, algumas culpas houve, tal se deve aos “médicos” da Junta que só, ao entardecer acordaram, e nanja a ele.

A estrada que de Alcoutim leva à aldeia do Pereiro, Martinlongo, Cachopo e por aí além, começa no velho cais. Nas portas da vila, ditas de Mértola, uma placa de mármore assinalava a sua inauguração, no reinado de D. Luís. Diz-se que obedeceu à necessidade de o príncipe D. Carlos ir caçar às “chadas” (planuras) de Pereiro e Martinlongo. Fosse como fosse, observado do rio, o cais é emoldurado por um muralhão de 15 ou 20 metros de alto onde outra placa com os dizeres em romano, comemora a visita de D. João VI.

O cais defendia a terra, do lado do rio e a estrada que até ao cais atravessa a vila, drena as chuvas da parte alta por meio de uma valeta encostada à muralha. Ao chegar ao cais, existia – e ainda hoje lá está – uma enorme placa de xisto fazendo de ponte sobre essa valeta. Era o ponto de apoio das pranchas que a nossa mocidade utilizava, brincando ao baloiço. Enquanto os pesos se equilibravam, a subir e descer, tudo eram encantos, mas o trambolhão estava mais que certo quando, numa das extremidades, se sentava algum mais volumoso.



Visando a nossa segurança, uma ou outra vez a sentinela da Guarda Fiscal punha o bando em alvoroçada correria. Do alto da muralha para onde nos escapulíamos, crivávamo-lo de insultos, quando não de pedradas; e no entanto o homem agira protegendo-nos paternalmente.

Era o começa da contestação, da necessidade de correr o risco de conta própria; muito mais idoso que aquela, representava o tempo do analfabetismo, em que à noite, à lareira, a idade pontificava como portadora e fiel intérprete da tradição. Sem que disso nos apercebêssemos, tinham passado os tempos em que o homem só o era portas a dentro, limitando-se, de fora, à surda ameaça entre dentes: “quando passares à minha porta tu verás como é”.

Os tempos, porém estão mudados, ninguém carece de convite para entrar em casa alheia – noção que deixou de ter significado – onde não existem portas ou, se as há, não têm fechadura ou tranca; tudo é de todos e nada é em particular de alguém: todos somos “santos” da auréola, e para em qualquer parte tomar um café ou bebida, dispensamos convites do dono da casa (outra noção inexistente).

Com estes considerandos quase perdemos o fio à meada. Historiávamos o baloiço quando se verificava desequilíbrio entre os participantes. Ao tocar o chão com violência, a parte pesada cuspia o desgraçado que ocupava o outro extremo.



O movimento, a vida, geram-se assim da coordenação de heterogéneos ; o equilíbrio perfeito é lapso momentâneo, pois se durável, é água podre, é morte. Porém, se o desequilíbrio ou desnível não for o apropriado aos fins da acção, ter-se-á tudo , quiçá uma explosão, menos o resultado pretendido.

Queríamos aventar com isto, que, no nosso caso, o grande desnível cultural e económico dos contactos turísticos levará á subordinação do mais fraco – com perdão dos que não admitem sublinhados, porque, dizem, em cultura não há altos nem baixos, sendo cada um simplesmente o que é – levará à subordinação, dizíamos, se perdendo o carácter de movimento se torner em barreiras permanentes e fixas de isolamento. É um ponto de vista que não exclui nenhum dos numerosos pontos que à volta do mesmo facto se podem considerar.

Acreditando que os erros, todo o erro, se deve ir diariamente emendando é sempre tempo de dar remédio a alguns se os há, e de, com tal experiência, obviar a que se instalem nas regiões virgens.

O progresso – quem tal diria! – tornando desnecessário o Guadiana, lançou Alcoutim na maior miséria e esquecimento que possa imaginar-se. Não é cruzamento de vias de comunicação nem término de nenhuma, não é região mineira, agrícola ou industrial; não é porto, nem possui qualquer predicado que a torne apetecida. A estes desencorajantes factores de ordem natural acrescem os de ordem humana, pois a população não oferece a menor garantia de sobrevivência.

Por tudo isto e sem qualquer outra saída, pretende-se a exploração turística. Podendo em boas condições, fornecer ao turismo balnear algo que lhe falta, queria-se fosse um dos seus complementos.

Só complemento e nada mais que isso; que se torne fonte de energias e vida segura e duradoira para que os ao longo dos tempos lhe sofreram as agruras. Há, assim, que afastar da região o espírito de desenfreada ganância. Problema enorme que envolve técnicas de várias especialidades, requere-se-lhe equipa competente, porque há por aí erros que fizeram história e que se devem ao facto de um abalizado técnico no seu ramo ser desde logo o perito indispensável em todos os outros.



A voz do povo, que não será neste caso a mais autorizada, aponta a necessidade de muitas ou de todas as infra-estruturas: pousadas marginais e interiores aqui e além, onde o0 caçador descansará; uma ponte sobre a ribeira de Cadavais para retirar à vila o carácter de beco e dar-lhe saída para o ar livre; a abertura da fronteira com a irmã “siamesa” S. Lucar, o que o tratado luso-espanhol de 1960 previa mas nunca foi feito; a florestação maciça (problema dos problemas, em nosso modesto entender) uma vez que os terrenos, pelo menos até hoje se mostram totalmente inaptos à agricultura, e os matos de estevas, tojos e xaraguaços não permitem a criação de qualquer espécie de gados, e, por último, a abertura de uma estrada marginal ligando a Castro Marim.

Este que colocámos em último lugar, resolveria (opinião geral) todas as dificuldades, dispensando outras propagandas e reclamos. Estamos de acordo quanto a esses resultados mas, da nossa conta, acrescentamos todos os perigos que temos vindo a apontar.

Pesem embora as guias que nos fornecem as experiências já feitas, o problema em nada perde a sua transcendência.