quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Um pouco de história, de actualidade e de estórias...O renascer da esperança entre os exilados espanhóis!





Escreve


Amílcar Felício


Dediquei a minha última crónica de 14 de Setembro à heróica luta do povo espanhol, que de 1936-1939 tinha ousado corajosamente agarrar em mãos o seu próprio destino, com todas as consequências trágicas que Alcoutim em parte testemunhou horrorizado. Referia nessa crónica que “mal sabia eu que quase três décadas depois do fim da Guerra Civil pelas fábricas de Bruxelas, ainda iria ajudar a enxugar as lágrimas de revolta de antigos combatentes e perseguidos do franquismo, sentir as dores e o ódio dos filhos dos fuzilados e partilhar com eles, os sonhos de um mundo novo com que muitos ainda sonhavam.”

[Bruxelas]

Estávamos no final da década de sessenta. Na realidade, depois da hecatombe de 1936-1939 e do marasmo do pós-guerra de 1939-1945 que se lhe seguiu, renascia a esperança entre os exilados espanhóis bem como entre aqueles que queriam um mundo melhor, com o surto dos grandes movimentos sociais dos anos sessenta do séc. XX.

De facto, o Maio de 68 em França e o seu reflexo na Europa, as vitórias do povo vietnamita no Sudeste Asiático que ameaçavam ajoelhar o gigante americano, o Guevarismo em Cuba e um pouco por toda a América Latina assim como a generalização dos Movimentos de Libertação em África contra o colonialismo desde os anos cinquenta, com a proclamação de diversas independências, constituíam cada um ao seu nível uma lufada de ar fresco que parecia fazer estremecer as banhas de um capitalismo e de um imperialismo cada vez mais gordo e anafado. No conjunto pareciam convergir numa única corrente, que ameaçava transformar-se num furacão de proporções gigantescas que punha em causa inclusivamente, o equilíbrio paralisante das duas superpotências da altura: EUA e URSS.

Mas era principalmente a Revolução Cultural Chinesa de 1966 que emergia como que uma ferramenta estratégica e que parecia garantir no futuro, o êxito continuado dos movimentos sociais. Na realidade, era a primeira vez que se abanava pela raiz toda uma estrutura dirigente, instalada há mais de 15 anos em “nome dos trabalhadores” – mas que com o tempo se iria naturalmente “degradando e enferrujando” – libertando todas as energias populares contra os interesses quer de “apparatchiks”, quer das castas de burocratas e de tecnocratas que tenderão sempre a moldar o poder em seu benefício. Retiravam-se assim, todas as lições das experiências fracassadas da primeira metade do séc. XX.
Historicamente, era também a primeira vez que se tentava organizar uma nova sociedade a partir de baixo. Fazia-se história!

Tratava-se de facto de uma luz ao fundo do túnel, que voltava a acender a esperança de antigos combatentes e de milhões de jovens estudantes e operários de todo o mundo, desiludidos com o enquistamento de outras experiências, algumas das quais com mais de meio século de existência como na URSS e aonde já era visível que tenderiam todas, mais tarde ou mais cedo, a repor a ordem contra a qual se tinham levantado, reproduzindo um “capitalismo de estado” à sua medida. O futuro haveria de lhes dar razão. Mas havia muita esperança no ar naqueles tempos caramba! Tudo parecia possível! Possivelmente, passe o pleonasmo, pela juventude dos nossos olhares românticos também.

Contudo, seria sol de pouca dura. A casta de burocratas e de tecnocratas chineses na década de setenta mais uma vez levaria a melhor, reconquistando o poder e fazendo pagar “aquela afronta” com elevadíssimos juros. Na realidade, transformariam a China nestas três últimas décadas, num monstro poderoso de economia selvagem (*) em vias de se tornar no motor da economia mundial a qualquer preço, ultrapassando os próprios Estados Unidos que já lhe vão comer à mão. Refira-se que a China já é neste momento o maior detentor de Títulos de Tesouro dos Estados Unidos, tornando-se assim no seu maior credor actual e o Presidente do Banco Central Chinês pasme-se, teria sugerido recentemente a compra da totalidade da dívida pública portuguesa. Demonstrando dominar perfeitamente a “arte” do mais vulgar especulador financeiro, atente-se à terrível arma política a que estes chineses pretendem deitar mão para se tornarem nos novos senhores do mundo... ao que aquilo chegou!

Estas mudanças brutais reduziriam dramaticamente os direitos dos criadores de riqueza, os trabalhadores chineses, a um único “direito”: o “direito” a trabalhar 12, 16 ou até 24 horas por dia a troco de uma “tigela de arroz”, sendo reprimida qualquer tentativa de formação de organizações independentes. A isto se reduz o tão badalado “milagre económico chinês” e que os governantes chineses vão paulatinamente exportando pelo mundo e por essa Europa fora, deitando assim gasolina para o fogo da crise financeira actual e contribuindo desta forma para transformá-la numa crise económica cada vez mais aguda, com o beneplácito dos “crânios dirigentes democratas” europeus. Estes por sua vez, com esta política do “deixa andar” não só se tornam cúmplices na manutenção da actual situação ditatorial na China (refira-se a atitude recente dos governantes chineses perante o galardoado Nobel da Paz, o chinês Liu Xiaobo), como contribuem decididamente para o aprofundar da crise económica e do desemprego crescente a que assistimos na Europa, com a falência de fábricas e mais fábricas incapazes de competir em condições tão desiguais.

[Guernica, de Picasso]

Mas voltemos aos “nuestros hermanos” para recordar uma pequena estória passada com eles em Bruxelas, numa média fábrica de produção de “chaufagens” com cerca de 300 operários e em que a maioria dos emigrantes eram espanhóis, que incluía naturalmente alguns antigos combatentes. Mas aonde havia também húngaros fugidos de 1956, checos de 1968 que tinham vindo à procura de “um socialismo de rosto humano” mas que depressa se desiludiam, jovens romenos incrivelmente despolitizados, jugoslavos na busca de um capitalismo que pagasse melhor do que Tito ou pequenos camponeses albaneses descontentes com os exageros de políticas sectárias e dogmáticas que lhes tinham confiscado as terras, apesar de se tratar de economias familiares. Decidimos certo dia parar a fábrica, com o objectivo de conseguir uma melhoria significativa nas condições de trabalho que eram péssimas.

Era obra, numa sociedade de grande consumo saída do grande “boom” capitalista do pós-guerra e com tanto contra-vapor, aonde os delegados sindicais e os próprios sindicatos estavam domesticados (foi o começo das chamadas “greves selvagens” porque fugiam ao controle dos sindicatos; as grandes fábricas na altura só aceitavam operários sindicalizados, imagine-se!) e a ideologia das classes trabalhadoras belgas passava mais pelo “tá-se bem” entre duas cervejinhas do que por qualquer tipo de reivindicação, apesar do seu forte e vivo sentimento anti-nazi, honra lhes seja feita, principalmente na parte francesa (Valónia) já que os flamengos (Flandres) tinham o estigma de “colabos”, pois tinham constituído uma base significativa de apoio a Hitler.

Quando se decidia quem iria chefiar a delegação para negociar com a administração e passando por cima do delegado sindical em quem já não acreditavam, gritam quase em uníssono `”nuestros hermanos: vay el português”. Eu que com os meus pouco mais de 20 anos os reverenciava como verdadeiros heróis e ao pé dos quais me sentia um aprendiz de feiticeiro, devo confessar que me senti tremendamente honrado com aquele gesto de confiança por representar tão distinta assembleia.

Mas ainda estava muito verdinho. Depois de quase uma hora de espera à porta do gabinete da Administração para ver se nos desmobilizavam, lá apareceu o Director e a sua equipa. Lá lhe expus os nossos argumentos até ele confirmar que sim senhor, que tínhamos razão e que iam mudar e melhorar tudo. Já dava eu a situação como vitoriosa, quando sai detrás de mim um colega dos seus 40 e tal anos, filho de um antigo Capitão fuzilado da República e que de dedo em riste junto ao nariz do Director lhe pergunta: “pero vays a cambiar cuando: hoy, mañana, el fin del més, el año que vienne, cuando?” Faltava este “pequeno” pormenor! Só saímos de lá depois dele se ter comprometido com uma data.

(*) Viagem ao outro lado da barricada: Há sempre um português em qualquer parte do mundo para contar a história, caramba! Esta, faz-me lembrar aquele dito algarvio que diz que “quando o Vasco da Gama chegou à Índia já lá estava um algarvio!” e permite, entre outras análises possíveis, reflectir no que existe de aventureiro na massa de que é feito um português!
Encontrava-me por razões profissionais na segunda metade dos anos 90 em Barcelona, quando um amigo espanhol me diz: “anda cá comigo que te quero apresentar um compatriota teu, que tem 10.000 operários na China”. Claro que pensei para os meus botões: mais um portuguesito a arrotar postas de pescada! Cumprimentámo-nos cordialmente, como sempre acontece quando os portugueses se encontram no estrangeiro. Só no estrangeiro nos apercebemos quanto gostamos de Portugal! Quando cá estamos, os outros é que são bons... lá fora, orgulhamo-nos “disto” e achamos que afinal não há nada melhor!
Marcámos um encontro para alguns meses depois em Nuremberga na Alemanha, aonde tinha que me deslocar a uma feira. Já na Alemanha convidou-me para jantar no seu Hotel de 5 Estrelas.
Aparentava ser um português médio sem grandes rasgos. Pura ilusão! Tinha uma sensibilidade e uma lucidez impressionantes quer na análise das relações estratégicas no mundo, quer sobre o deslocamento no tempo, do centro de gravidade da indústria tradicional. Dizia-me ele há mais de 10 anos: “a Europa industrialmente já foi e agora quer acordar mas já é tarde. Agora vai ser a China o centro de gravidade e depois virá a Índia a um nível ainda superior”. Parecia uma profecia: sabemos hoje de que não existe uma grande empresa europeia ou americana, que não esteja sedeada na China, assim como conhecemos também a liderança das novas tecnologias pela Índia, que está à beira de acordar.
Naturalmente, também dava palmadinhas no rabo das empregadas durante o jantar à boa maneira portuguesa, ao que elas correspondiam com um sorriso nos lábios. Era uma questão de “status” no hotel aonde se hospedava normalmente! Parece que também dava gorjetas de 100.00€ (naquele tempo em marcos), como quem come tremoços. Portanto tudo lhe era permitido.
Contou-me a sua estória. Esta será certamente um exemplo prático, de como se terá processado o princípio do fim da China Popular. Parece incrível mas foi assim: foi para a China no rescaldo da Revolução Cultural. Acho impressionante alguém aventurar-se num país com uma cultura tão diferente e numa altura daquelas: é como pensar ir montar um negócio em Marte nos nossos dias, na minha opinião!
Alugou terrenos com todas as facilidades e mais algumas ao preço da “uva mijona” e com o agradecimento efusivo do governo chinês: blah... blah... blah..., blah... blah... blah..., blah... blah... blah... Fez contractos de aluguer de terrenos por períodos de 100 anos e nos quais deveria construir fábricas – propriedade sua, privada – enquanto os terrenos seriam sempre públicos, com a única obrigação de empregar no mínimo 300 operários por fábrica. Assim começou de fábrica em fábrica até se tornar num magnata.
À despedida ainda se disponibilizou: “se precisar de alguma coisa para aquelas bandas incluindo o Vietname, telefone-me para o meu escritório de Nova York, Macau ou Hong Kong que eu vou lá consigo, pois tenho bons amigos por aqueles governos todos...” Ok “amigo”, acho que não vai ser preciso, respondi-lhe “agradecido”!
O mundo dá tantas voltas caramba, ou cambalhotas eu sei lá... mas para aonde é que ele nos leva? Responda quem souber!