quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Quadro da vida real de um monte há 68 anos!

[O monte de Afonso Vicente onde se passaram os factos]

Na década de quarenta do século passado, a vida rural no concelho de Alcoutim era muito dura. O trabalho começava ao raiar da manhã e terminava ao pôr-do-sol. Todos tinham de participar na economia familiar para poderem sobreviver e mesmo assim com dificuldade. Até os mais novos tinham de contribuir com o seu trabalho, normalmente a guarda de pequenos animais.

A monotonia da vida era interrompida quando morria alguém, posição de tristeza e de respeito que todos acompanhavam e em posição inversa, quando nascia alguém, mais um filho que ia contribuir nas tarefas familiares, era assim que se pensava por esse País fora.

Como o homem não pode viver só de trabalho e existem outras funções também a ele destinadas, teria de haver algum entretenimento que durante umas horas o fizesse pôr para trás das costas a face mais dura da vida.

Cantar e dançar estiveram sempre nos hábitos do povo e o contacto entre o homem e a mulher existe desde que o Mundo é Mundo!

Em dias de nomeada, os jovens juntavam-se nos terreiros dos montes cantando e dançando em bailes de roda. Nos períodos de descanso, aproveitavam os mais verbosos para cantar ao desafio e muitas vezes estes descantes constituíam um despique entre dois rivais que procuravam conquistar a mesma moça. De vez em quando apareciam elas respondendo com palavras nada lisonjeiras dirigidas aquele que pretendiam ver afastado.

Era o 1º de Janeiro e havia baile com tocador (harmónio) na casa da Ti Florência Gomes no monte de Afonso Vicente.

[Local do monte onde se realizou o animado baile]

O monte estava cheio de mocidade, moços e moças, os que ainda cá estão põem-se a contar. Eram tantos! Onde há juventude, há animação!

Nessa altura os partos decorriam em casa com a presença de familiares próximas e vizinhas e de uma mulher da aldeia ou das redondezas “habilitada” para o efeito.

Enquanto o baile decorria animado lá para os lados da Alagoa chorava pela primeira vez uma menina com o auxílio da Ti Fastina.

A desembaraçada mulher,depois de estar tudo em ordem, vai ao baile e diz para a moçada: É preciso ir ao Balurco dizer a fulano que já cá tem uma moça. Aquilo era uma ordem a que foi respondido:- Fique descansada que logo vamos.

[O sítio da Alagoa onde nasceu a criança]

E a” bailação” continuou animada e os cortejares prosseguiram!

Horas depois aparece novamente a Ti Fastina e os moços quando a viram entrar logo lhe disseram:- Ó mulher fique descansada que nós logo vamos dizer ao homem.

Não é por causa disso que aqui estou, moços, é que morreu o marido da Ti Custódia Castelhana, irmã do Ti Virgolino! Toma lá Cavaco o cordel para levares amanhã ao Mestre João Bento.

Tudo parou e ficou pensativo.

O marido da Ti Custódia Castelhana era pastor e exercia a sua actividade em Espanha. Quando lhe era possível e poucas vezes seria, vinha visitar a mulher e a família ao monte. Foi o que tinha acontecido naquela noite. O cordel representava a medida do corpo para o carpinteiro, Mestre do aprendiz Cavaco, fazer o caixão.

Neste cenário, o tocador que tinha vindo do Pomarão onde foi obrigado a interromper o toque pela morte do Sr. Zarcos, acabando por não receber aquilo de que estava à espera, perguntou para os presentes: Afinal toco ou não toco?

Toca lá que o homem está a dormir!

Ao raiar da manhã e depois do baile acabado, um dos moços foi dar a notícia do nascimento da criança, ao pai, ao Balurco e o Cavaco foi para o trabalho, meio ensonado, levando a corda como medida do caixão.

Dizia a Ti Custódia Fastina:- Morreu um, mas nasceu outro, ficou tudo na mesma!

Aqui fica esta história picaresca da vida real desses tempos.