domingo, 17 de outubro de 2010

Lucindinha ou as propriedades de um "cortilho do Loureiro"

Pequena notaEsta pequena “estorieta” não se passou em Alcoutim mas podia ter-se passado em qualquer ponto do País onde as características são muito semelhantes.
José Temudo, com a habilidade da sua escrita, dá-lhe um toque de graciosidade.
JV





Escreve

José Temudo


Da boca de pessoa de família, ouvi, há dias, uma pequena e muito engraçada “estorieta”, aliás, verdadeira, que me fez lembrar uma outra, passada em Chaves, há muitos e muitos anos, era eu um jovem mal acabado de sair da adolescência.

Há tanto tempo foi que esqueci o nome da protagonista. Foi a Amélia que mo lembrou. Lucindinha, assim era chamada. O diminutivo era não só a expressão do carinho piedoso dos que a conheciam, como também estava relacionado com a sua muito baixa estatura que não iria muito além da de uma anã. Desconheço que idade elça teria então. Quarenta, cinquenta, sessenta anos? Vá-se lá saber a idade de uma anã ou de uma quase anã! Igualmente, esqueci a que família pertencia ou em que casa morava. Lembro-me, contudo, do “território” que habitava e onde eu, diariamente, a via: na Praça ou Largo de Camões e nas pequenas e estreitas ruelas que a poente lhe dão acesso.

[Chaves, Largo Camões]

Em que se ocupava e de que vivia esta pequena e inofensiva criatura, mas cujo rosto era tão feio que causava estranheza e medo à arraia-miúda? Tanto quanto me recordo, ela ocupava o seu tempo prestando pequenos serviços à vizinhança, como ir à mercearia, à padaria, à tasca, lavando a louça de um pequeno café, varrendo a rua à frente das portas das casas... coisas assim. E, em troca, as pessoas davam-lhe comida e protegiam-na dos gandulos que, sem dó nem piedade, lhe atazanavam o pouco juízo que ela tinha. Verdade se diga, a Lucindinha também gostavam de amedrontar a pequenada, que pegava de estaca à sua volta, rangendo os dentes e emitindo sons mais animalescos do que humanos.

Um dia, a Lucindinha adoeceu gravemente. E, alguém, da família ou da vizinhança, levou-a ao Hospital da Misericórdia, que ficava no Largo, ali mesmo à mão. Foi examinada pelo médico de serviço, profissional competente e pessoa séria e de poucas palavras que, dirigindo-se à enfermeira religiosa que o acompanhava, lhe sussurrou:
“Aqui, já nada há a fazer, restam-lhe poucas horas de vida.” E acrescentou: “Quanto à dieta, dêem-lhe o que ela quiser ... se ela ainda quiser alguma coisa.”

[Igreja da Misericórdia de Chaves]

A freira retrocedeu à cama onde estava a Lucindinha e vendo-a de olhos abertos, ainda que mortiços, perguntou-lhe carinhosamente:
“Então, Lucindinha, apetece-lhe alguma coisa, uma aletriazinha ou um cremezinho? Vá, diga lá: o que lhe apetece?”

Por um breve momento, os olhos da Lucindinha ganharam um pouco de luz e balbuciou custosamente estas palavras:
“Um cortilho do Loureiro.”

A freira ia negar-lhe terminantemente o pedido, mas lembrou-se da recomendação do médico e mandou um criado à tasca do Loureiro comprar-lhe um quartilho de vinho (meio litro). E deu-lhe um copo, na convicção de que a Lucindinha já não teria forças para o beber; mas bebeu-o, esse e um outro, e outro ainda, até mais não restar na garrafa. Depois, a Lucindinha fechou os olhos e adormeceu profundamente, levando a freira a pensar que ela não mais acordaria daquele sono.

Na ronda, a meio da noite, a freira acercou-se da cama onde estava a Lucindinha, receando o pior. Mas, o que viu, deixou-a perplexa. A Lucindinha não só estava viva, como dormia um sono tranquilo que transparecia do modo repousado e compassado como respirava. Horas depois, mal amanheceu, voltou à enfermaria e, de imediato, dirigiu-se à cama da Lucindinha, que encontrou acordada, de olhos bem abertos, mas sem uma ponta de alegria que iluminasse aquele pequeno rosto feio. Ainda assim, a freira cumprimentou jubilosamente:
“Bom dia Lucindinha, então, sente-se bem?”

A Lucindinha continuou a olhar para ela, mas da sua boca não saiu uma só palavra. A freira insistiu:
“Mas, não se sente bem, dói-lhe alguma coisa?”

A Lucindinha, moita-carrasco, continuou de boca fechada, mas fez que não com a cabeça. A freira não desistiu. Já sem a anterior brandura, mas ainda sem rudeza, disse-lhe em tom firme:
“Vamos, diga-me já onde lhe dói; eu tenho mais doentes para tratar.”

A Lucindinha não resistiu à ordem da freira. Custosamente, deixou sair estas poucas palavras, já com os olhos de lágrimas:

“Não dói nada... caguei-me toda... esta noite... foi sem querer!

A freira foi apanhada de surpresa, mas como era bondosa, sossegou-a:
“Não foi a primeira, nem será a última, não se apoquente por isso. Nós vamos já tratar de lavá-la e vesti-la de limpo. E Deus seja louvado, pois a mim me parece que já está curada!”

[Chaves. Um aspecto da cidade]

Horas depois, já lavada e vestida, a cama feita e fresco, foi novamente examinada pelo médico que no dia anterior lhe sentenciava a morte dentro de poucas horas. Não lhe tendo encontrado quaisquer sintomas de doença e sabendo já o que se tinha passado após o seu primeiro exame, deixou escapar estas palavras, com um breve sorriso irónico nos lábios:
“Pelo que vejo, Lucindinha, escapaste das garras da Maldita, com um simples “cortilho” do Loureiro. Estamos sempre a aprender!”

E deu-lhe alta, nesse mesmo dia.

Não sei quantos mais anos a Lucindinha viveu. Eu já tinha saído de Chaves quando ela devolveu a alma ao Criador.


Vila do Conde, 7 de Agosto de 2010.