sábado, 11 de setembro de 2010

A medida do tempo

Pequena nota
Não podemos deixar de fazer aqui esta pequena nota.
Várias vezes temos escrito que o ALCOUTIM LIVRE não é exclusivo de assuntos sobre Alcoutim e o seu concelho. Sempre que o consideramos necessário e por motivos alguns bem diferenciados, aqui apresentamos esses textos e ilustrações.
O que damos a conhecer hoje é “uma história da vida real” apresentada com grande rigor e a subida sensibilidade que as palavras usadas transmitem ao leitor.
As coisas eram mesmo assim ainda que os jovens de hoje possam pensar que existe imaginação do autor.
O primeiro relógio que possuímos adquirimo-lo aos vinte anos, um “Candino” com o dinheiro que ganhámos dando explicações. No nosso tempo de liceu, muito menos de metade dos alunos tinham relógio.
O leitor pode retirar desta “postagem”, algo de muito interesse, começando logo pela história da medição do tempo e terminando com um bom poema, ao nível daquilo que o autor nos tem habituado.
Apesar de tudo isto, este nosso colaborador tem alguma ligação a Alcoutim pois foi lá que iniciou a sua escolaridade, ministrada pelo professor Trindade e Lima.
Obrigado, José Temudo, pela lição.


JV







Escreve

José Temudo



I
Muitos de nós, no mundo ocidental, já viram ou ouviram falar dos diversos meios e instrumentos que, no decorrer da História, foram inventados e usados pelo homem para medição do tempo: velas de cera, candeias de azeite, relógio de sol, relógio de água (clepsidra), relógio de areia (ampulheta), relógio mecânico (de pêndulo e de mola em espiral), relógio astronómico, relógio eléctrico, relógio atómico, relógio electrónico, relógio de bolso, relógio de lapela, relógio de pulso e, por último, podemos ver as horas nos computadores e nos telemóveis. E, nesta longa e, porventura, desordenada lista, não vou deixar de lado nem o mais antigo e o mais democrático de todos, o estômago de cada um, nem o relógio de Almada, o burro que zurrava sempre à mesma hora, por isso, uma referência para os habitantes dessa antiga e histórica vila!

Na actualidade, creio poder afirmar que não haverá uma só criança neste nosso mundo, rico como nenhum outro, que ao entrar para a escola não disponha de um qualquer meio onde possa ver “às quantas anda”.

II

Não era assim na época em que nasci. Nos meios urbanos, o comum dos mortais já regulava o seu tempo ouvindo o bater das horas no relógio da torre da Igreja ou da Câmara Municipal, e faziam-se acordar ao som estridente do relógio despertador, colocado na mesa de cabeceira.

No mundo rural, as pessoas, diferentemente, ainda regulavam os seus trabalhos pela posição do sol no céu e pela sombra das árvores; deitavam-se quando as galinhas se deitavam e levantavam-se quando o galo cantava, anunciando o dia.

Nesse tempo, algumas pessoas, relativamente poucas, usavam relógio de bolso, com caixa de oiro, ou de prata ou de latão, conforme o grau de riqueza que possuíam. O relógio era usado no bolso esquerdo do colete, preso, por uma razão de segurança, por uma corrente metálica que prendia a sua outra extremidade no correspondente bolso do lado direito do colete, depois de passar pela casa do botão que ficava entre os dois bolsos. O metal de que era feita a corrente era, obviamente, o mesmo de que era feita a caixa do relógio. Corrente e relógio eram um sinal exterior e seguro não só da riqueza como do estatuto social de quem os possuía... e exibia!

III

O aparecimento do relógio de pulso é muito mais recente e o seu uso bem depressa se democratizou.

Julgo ter sido em Monchique, teria eu uns oito anos, que vi o primeiro relógio de pulso. E lembro-me desse facto por estar ligado a uma faceta caricata do seu possuidor, homem dos seus vinte e cinco anos, aspirante de finanças, subordinado de meu Pai. Muito vaidoso, exibicionista sem auto censura, ele consultava o relógio com desusada frequência e fazia isso de um modo teatral, levantando o antebraço à altura dos olhos. Era motivo de galhofa, mas nele a vaidade de possuir um relógio de pulso, que poucos tinham, superava o sentido do ridículo.

IV
Eu tive o meu relógio de pulso aos vinte e três anos de idade.

Foi-me oferecido pela Amélia, com quem namorava, no Natal de 1953. Fiquei muito satisfeito com a oferta, tanto mais quanto é certo que, em quatro anos de trabalho, eu não tinha conseguido juntar a importância necessária para comprar um. Para além do mais, a oferta foi muito oportuna. Eu estava, então, em Mafra, frequentando o Curso de Oficiais Milicianos, onde a falta de pontualidade podia ser severamente penalizada.

O relógio era da marca Hertig, com algum prestígio, mas no mostrador, tendo em vista publicitar o nome do relojoeiro que o comercializava, ostentava, salvo o erro, o nome de “Belcor”.

V

No ano de 1956, encontrava-me em Goa, na prestação de serviço militar obrigatório. Integrado no Batalhão de Caçadores da Índia, eu comandava um pelotão constituído, na sua quase totalidade, por jovens oriundos do mundo rural, das regiões de Chaves, Boticas e Montalegre. O seu nível cultural era muito baixo e, alguns deles, só aprenderam a ler no Batalhão de Caçadores de Chaves, na chamada Escola Regimental. Estava nessa situação o soldado de que vou falar, cujo nome já esqueci, mas de quem recordo o número. Era o 226, ou melhor, era o “Dois vinte seis”, como era conhecido e chamado. Filho de pais muito pobres, jornaleiros. Era fisicamente um trinca espinhas; os seus olhos eram tristes, reflectindo bem a miséria que tinha sido a sua vida antes de ir para a tropa.

[Índia. O porto de Mormugão e o caminho de ferro]

Em Goa, passeando na cidade de Pangim, enamorou-se de um relógio que viu na montra de uma ourivesaria. E, logo ali, resolveu que um dia haveria de comprá-lo. Para isso, foi fazendo economias, à custa de cortes nas despesas com o consumo de cervejas e de cigarros, Ao fim de uns bons meses, conseguiu juntar a importância necessária para realizar o seu desejo. E comprou o relógio. No dia seguinte. Estava eu nos claustros do Convento, que nos servia de quartel, conversando com um camarada, notei que o “Dois vinte e seis” estava parado perto de nós, como que aguardando que a conversa acabasse para depois se dirigir a mim. Perguntei-lhe:
“Queres alguma coisa, “Dois vinte e seis”?
“Quero, sim, meu alferes, disse, aproximando-se de mim. “O meu alferes pode dizer-me que horas são?”

Consultei o relógio e disse-lhe as horas. Ele ergueu o pulso, onde vi um relógio e disse-me, com os olhos brilhando de satisfação:
“Está certo; o relógio do meu alferes bate malhinho com o meu! O “Dois vinte seis” era um homem feliz, quem sabe, se pela primeira vez na vida!

VI

Em 1973, fui promovido e colocado na cidade de Bragança. Por este tempo, já o meu Hertig ou Belcor começava a dar sinais de desgaste e de cansaço, que sucessivas idas ao relojoeiro não debelavam. Era altura de mudar. E comecei a olhar para as montras das ourivesarias, E, um dia, na companhia da Amélia, já mãe dos nosso quatro filhos, vimos um Ómega que logo me seduziu. E tanto foi o meu entusiasmo, que ela resolveu oferecer-mo no Natal, não obstante o seu elevado preço, correspondente a metade do meu ordenado mensal. Custou-nos os olhos da cara! Mas como ele, eu estava seguro de que iria ter horas rigorosamente certas, ao segundo. Que ele iria ser uma referência tão infalível e confiável quanto o Big Ben!

[Castelo de Bragança]

Que desilusão sofri! Ao fim de uma semana, já levava um adiantamento de dois minutos. E não houve relojoeiro a quem o fui levando ao longo dos últimos trinta e sete anos, que o pusesse a funcionar com o acerto e o rigor que a marca e o preço faziam esperar. Até o levei ao representante da marca Ómega, em Portugal. Em vão! Acertava-o num dia e, uma semana depois, já estava adiantado dois minutos, como sempre. Acabei por me conformar com aquela desagradável situação que se me afigurava como irremediável. E, assim, se passaram trinta e sete anos, até que, inesperadamente, há cerca de um mês, quando me preparava para o acertar pelo sinal horário transmitido pela T.S.F., verifiquei que estava rigorosamente certo, até nos segundos! E assim mesmo se tem mantido, dia após dia, para espanto e alegria da minha parte.

[Quartel de Chaves]

Com agradável surpresa, a memória levou-me de regresso ao passado distante, a Goa, aos claustros do Convento da Mónicas, ao “Dois vinte e seis” e à breve mas engraçada conversa que tivemos, há mais de cinquenta anos. E, assim, quando agora confiro as horas do meu relógio com o sinal horário da T.S.F. , irresistivelmente, digo para os meus botões:
“Está certo, bate malhinho com o meu!”

Como há feridas que não saram, por mais tempo que passe, não vou dizer que sou um homem feliz, como me pareceu ser o “Dois vinte e seis”, olhando o seu relógio. Mas lá que fiquei muito contente, isso fiquei. Como é agradável ter-se alguém como uma boa referência, ou saber-se que somos uma boa referência para alguém, ou, até mesmo, que possuímos um simples relógio que consideramos ser um paradigma de bom funcionamento, uma referência horária segura!

VII
A ILUSÃO

Dizemos que o tempo voa,
ou que se arrasta,
ou que pára, ou que corre,
ou que se escoa.
Eu penso que o tempo não é,
que o tempo não existe,
por isso, não corre, não voa,
não pára, não se escoa.
Penso que a matéria, sim,
é tudo quanto existe,
dentro e fora de mim:
é ela que pára, que corre,
que vive e que morre,
e sempre persiste
num recomeço sem fim!

Vila do Conde, 4 de Junho de 2010.