quarta-feira, 14 de julho de 2010

Em defesa dos "Três Setes"

(PUBLICADO NO JORNAL DO BAIXO GUADIANA Nº 67, DE SETEMBRO DE 2005, P. 15)

[Apultana de paus, naipe representativo dos camponeses]

Se algumas vezes os temas para a escrita vão amadurecendo com o decorrer do tempo, outras assim não acontece – um objecto, um dito, a observação de uma cena, por exemplo podem-nos trazer rapidamente à cabeça um assunto e o seu desenvolvimento. Foi o que nos aconteceu hoje.

Por volta das cinco da tarde é meu hábito interromper os meus trabalhos distractivos, desço as escadas e cinquenta metros percorridos entro num dos cafés que normalmente frequento, sentando-me sempre à mesma mesa, desde que, como é evidente, esteja vaga, o que normalmente acontece, já que o café é espaçoso e a mesa é pouco procurada.

Por norma não é preciso pedir a bebida já que os meus hábitos são conhecidos. Quase sempre me acompanha alguma folha de texto que aproveito para corrigir e modificar.

Hoje dei os mesmos passos não levando contudo nada para ler.


Na mesa em frente, o que vi pela primeira vez, dois moços da minha idade, jogavam uma partida de cartas, com baralho novinho. Um deles, é cliente da casa, conhecendo-o por esse facto.

Como não tinha nada para ler, fui observando a jogatana, apercebendo-me que estavam jogando a bisca lambida, próprio para duas pessoas e habitual por esta região. Se não fosse esta, seria a de nove, mais complicada e também muito usada por estes sítios.

As inevitáveis questões que o jogo sempre traz foram naturalmente aparecendo, com a verificação das jogadas decorridas e tentativas de demonstração de arrenúncias (renúncias). A partida foi decorrendo com civismo, enquanto cada qual ia bebericando no seu copo, um de cerveja e o outro de um sumo. Lá terminaram a partida e o perdedor foi pagar a despesa feita, como é tradição por estas bandas.

Mas o que tem a ver isto com Alcoutim?

Além de em todo o concelho ainda ser hábito jogar à carta e não jogar as cartas como se diz genericamente por todo o país, os alcoutenejos praticam um jogo que nunca vi praticar em qualquer outra parte, nomeadamente no Ribatejo, Beira Alta ou Estremadura, zonas que conheço melhor.

Quando há trinta e oito anos cheguei a Alcoutim e vi jogar os “Três Setes”, fiquei admirado, não por ser mais um jogo, mas por ser muitíssimo diferente dos outros que conhecia e, na minha modesta opinião, ser mais difícil devido ao maior número de hipóteses a considerar em cada jogada.

Quando por estas paragens encontro jogadores inveterados de cartas, é meu hábito perguntar se conhecem os “Três Setes”. Enumeram-me muitos jogos que conhecem, mas de “Três Setes”, não sabem nada!

Não o tenho procurado só a nível oral, quando encontro livros em que o assunto pode ser referido, lá estou eu a procurar os “Três Setes” mas até agora só encontrei uma leve referência na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.

Possivelmente, o jogo de cartas mais popular e vulgar por todo o país, será o da “Sueca” que os jogadores dizem, para cumprimento das regras, foi inventado por quatro mudos. Desconheço a sua origem não sabendo se tem a ver com o país nórdico que sugere. Diziam-me os velhos de há quatro décadas que era jogo quase desconhecido no concelho, aqui jogavam-se os “Três Setes” e o “Truco”!

A novidade começou a impor-se e os “Três Setes” passaram a segundo plano mas sendo ainda praticamente o único jogo praticado nos lugares mais recônditos do concelho, onde a penetração da “Sueca” se tornava mais difícil, devido ao isolamento.

Após o 25 de Abril e devido à chamada de atenção para a conservação do nosso património em todos os seus parâmetros, os “Três Setes” voltaram a emergir.

Ainda recentemente conheci um bom jogador de “Três Setes” que não sabia jogar à “Sueca”! Claro que não é um jovem.

Sem procurar definir as regras dos “Três Setes”, direi que é um jogo em que entram quatro jogadores, formando duas equipas. Baralho de quarenta cartas pois são retirados os “8”, “9” e “10”.

Não há trunfo e o jogo obriga a naipe. O valor das cartas tem a seguinte ordem decrescente: - terno, duque, ás, rei, valete (conde ou cavalo), dama, sete, sena, quina e quadra.

[Jogando a "Sueca"]

Antes de jogar a primeira carta de cada partida, o jogador deve acusar (pode deixar de o fazer e sendo assim, não conta), isto é, denunciar que possui uma ou mais apultana, ou seja o conjunto de terno, duque e ás do mesmo naipe e se tem três ou quatro ternos, duques ou ases. A apultana dá origem à marcação de três pontos ou tentos e os ternos a quatro ou três, conforme for o seu número, o que acontece igualmente em relação aos duques e aos ases, sendo obrigatório dizer o naipe da carta que falta.

São disputados em cada jogo onze pontos, incluindo o ganho pela terra, isto é, por quem fizer a última jogada (vaza).

A partida termina aos quarenta e um pontos e cada três figuras (além dos tradicionais rei, valete e dama, inclui-se o terno e o duque) equivale a um ás que por sua vez faz um ponto ou tento.

Ter uma arrufada é ter muitas cartas do mesmo naipe, o que umas vezes é mau e outras bom, depende do jogo do parceiro e de quem sai.

Que eu saiba, o jogo dos “Três Setes” pratica-se na Serra Algarvia e regiões limítrofes, onde se pode incluir o Barrocal, o Litoral e o sul alentejano.

Este jogo sugere-nos origem mediterrânica, mais propriamente do antigo Reino de Nápoles e isto porque apultana nos parece tratar de corrupção de napolitana. Será?

Sem dúvida que em tempos recuados povos dessas zonas vieram Guadiana acima e por aqui se fixaram, trazendo nomes, usos e costumes que lhes faziam lembrar as origens.

O pequeno monte de Lombardos, na freguesia do Espírito Santo, concelho de Mértola, não terá a ver com a Lombardia? E a zona rústica próximo da vila, designada por Toscana não lembrará a antiga região hoje pertença da Itália? E a zona rústica das Provenças, para os lados de Santa Marta, não terá a ver com a antiga província, hoje incluída na França?

Organizar Grandes Torneios de Sueca, deixando os “Três Setes” completamente esquecidos, é o mesmo que trocar aguardente de medronho por uísque , vinho por cerveja, forros de cana por esferovite, figos de tuna por kivis, galo de cabidela por galo com cerveja, enfim ... é chover no molhado.

Todos nós temos o direito à escolha, cada um come do que gosta.

O que eu não entendo é que Entidades ou pessoas responsáveis, fomentem e dêem guarida ao desvirtuamento de um concelho, de uma região. ASSIM, NÃO.