sexta-feira, 9 de julho de 2010

As maganas das barrigas negras não me deixaram dormir!

Pequena nota

Quero ser muito sucinto nesta pequena nota fazendo apenas realçar dois pontos:
.1 – O magnífico quadro que nos dá o autor do” Alcoutim Romântico” que existiu e que já passou;
.2 – Mais um precioso testemunho sobre Luís Cunha, na verdade o Homem que fazia a diferença em Alcoutim.
Os meus parabéns por tão belo texto.

JV






Escreve

Amílcar Felício






Aquela Rua das Portas de Mértola nas noites escaldantes de Verão dos finais da década de cinquenta, era pequena para tanta gente! Havia noites então, em que para lá dos adultos que para ali vinham passar o serão, quase toda a miudagem das redondezas se concentrava ali.

Tratava-se na sua maior parte dos filhos das famílias mais características de Alcoutim, de um modo geral com quase meia dúzia de “rebentos”, pois naqueles tempos não se brincava em serviço! Desde os Lázaros aos “Afonso Costas”, aos Carolinos, aos Eliseus, aos Cunhas, aos Barões, aos filhos do Sr. António do “Vinagre”, do Sr. António Sapateiro, do Ti Pandareta, do Mestre Pinto, da Da. Maria Tomásia etc., passando pelas famílias mais pequenas com dois ou três como os Soeiros, os Emílios, os Brandões, os Canelas, os Melões ou os Nãmeaces, quase toda aquela juventude convergia ali para a brincadeira.

Naqueles tempos viviam ou faziam a sua vida na Rua das Portas de Mértola e na Rua da Misericórdia cerca de 80 pessoas. E à noite, enquanto os adultos sentados nos poiais das casas conversavam ou cantavam à alentejana à espera que o fresco chegasse, a rapaziada divertia-se à grande inventando todo o tipo de brincadeiras e tropelias!

Quando por ali passo numa ou outra noite de um qualquer Verão dos nossos dias e vejo a Rosa, o marido, o Fernando “Pandareta” (*) e a esposa ao fresco – restos de um passado que a borracha do tempo vai apagando sem contemplações – ainda me ressoam os ecos da algazarra daquelas noites.

[Rua da Misericórdia. Foto JV, 1969]

E a verdade é que não precisávamos de grandes sofisticações para nos divertirmos. Desenrascávamo-nos com a prata da casa. Na realidade a abundância de matéria prima existente na Vila como pedras, canas, paus, cordas, pau de piteira, bolas de trapo e por vezes até bexigas de porco que transformávamos em excelentes bolas de futebol nos anos em que não faziam o “palaio” (deixem-me lá matar saudades do velho “palaio”, hoje não me apetece paio!) davam asas à nossa imaginação e às brincadeiras que nunca mais acabavam.

Se exceptuarmos a “sofisticada” roda ou arco em ferro, que apontava já para a época da “idade dos metais” que viria a seguir, os nossos “brinquedos” naqueles tempos bem poderiam ter sido os brinquedos dos meninos da “idade da pedra”, pois a matéria prima de que eram feitos seria praticamente a mesma. Até uma grande parte da garotada naqueles tempos andava descalça, imagine-se!

Com pedras jogávamos à galinha, à malha, à fisga, ao berlinde e quando as coisas corriam para o torto até “jogávamos” à pedrada. As raparigas brincavam à calha, ao jogo das 5 pedrinhas. Saltavam também à corda e jogavam aos 4 cantinhos ou à cabra cega.

Mas a pedra também constituiu um precioso objecto pedagógico que ensinou muita gente a ler e a escrever. Os meus amigos da Corte do Tabelião, da Corte da Seda e do Marmeleiro com menos posses de um modo geral, foram verdadeiros artífices – a necessidade aguça o engenho – e para evitar comprar lápis de ardósia para escrever, lá iam “lixando o negócio aos meus velhos” e faziam eles próprios os seus belos lápis de xisto e por vezes até os berlindes. Até “fabricavam” para o professor Amaral escrever no quadro, um lápis grosso tipo marcador de que não me recordo como lhe chamávamos. Não tenho qualquer ideia de se usar giz naqueles tempos!

[Ribeira de Cadavais em 2010. Foto JV]

Realmente, no seu trajecto diário a pé para irem à escola a Alcoutim, tinham todo o tempo do mundo para escolher as melhores “taliscas” do caminho. Tempos terríveis para aquela juventude caramba! Mas lá voltavam eles todos os dias, quer chovesse quer ventasse com as suas “talegas” de pano às costas, uma mais alta do que comprida e meio arredondada no fundo com o almocinho, que normalmente era pão com toucinho entremeado ou nos dias de festa com chouriço (o presunto era raro), outra mais rectangular com os deveres da escola. O pessoal da Corte do Tabelião deixava os viveres na taberna do meu avô António Joaquim aonde almoçavam (actual estabelecimento comercial da D.ª. Rosa), o pessoal da Corte da Seda assentava arraiais na taberna do Sr. Simões, hoje habitação da família Canelas.

Esta prática levava a miudagem naquele tempo a baptizar os lápis ou como “lápis de pedra” se fossem para escrever na ardósia ou como “lápis de papel” se fossem de carvão para escrever em papel. Já no Liceu em Lisboa com os meus 11 anitos e com esta terminologia que julgava universal, fui a uma Papelaria comprar um “lápis de papel”. Fiquei vermelho de vergonha: “aqui não vendemos isso, só vendemos lápis de carvão e canetas” diz-me a empregada com cara enjoada... e eu a vê-los na prateleira. Caí em mim naquele momento, mas não dei parte de fraco. Fui a outro lado comprá-los e já lhes chamei pelo próprio nome!

Com paus jogávamos “ao palito” e até havia artistas que faziam o seu próprio “peão”. Aproveitávamos também o pau da piteira que imitava perfeitamente um stick para as jogatanas de hóquei em patins – talvez o desporto mais popular da altura – embora o nosso fosse mais do “género” de hóquei em campo pois não “usávamos” patins. As balizas eram as sarjetas da estrada quase sempre em frente uma da outra. Com uma cana entre as pernas “cavalgávamos” quilómetros num “puro-sangue lusitano” que até relinchava e até corridas de bicicleta fazíamos na altura da Volta a Portugal com um arame a fazer de guiador.

[Boca da Ribeira. Foto JV, 2010]

E quando chegava a abertura da caça a 1 de Outubro, esse ritual ancestral que trazemos no ADN desde a alvorada da humanidade, num tempo ainda muito genuíno e em que muitos ainda caçavam por necessidade, era o empolgamento total que se apoderava da garotada! Íamos até ao cerro da Mina ou até perto do Marmeleiro à espera dos caçadores para participarmos no final da caçada. Era uma autêntica loucura para a miudagem!

A caça penso, traz associada uma falsa sensação de força, de poder, no mínimo de força e de poder sobre a presa. E ter poder sem conseguir exercê-lo transforma-se numa desonra. Agora imagine-se aqueles que traziam o “chibato” como é que eles se sentiriam? Eram uns fracos naturalmente! Mas era também o momento dos miúdos se “empertigarem” e fazerem sentir alguma força crítica, zurzindo atrás deles meeehhhh...!, meeehhhh...!, meehhhh...!. Parecíamos as vuvuzelas do Campeonato do Mundo na África do Sul. Fazíamos-lhes esperas mas eles sorrateiramente, sumiam-se a maior parte das vezes sem darmos conta.

Existia também antes da abertura da caça um “aperitivo especial” em Agosto salvo erro. Tratava-se da caça à Rola e à Barriga Negra. O Alcoutim Livre tem publicado diversos textos que mostram as preocupações e o realismo das análises do Sr. Luís Cunha sobre o Alcoutim de então. Eu vou entrar um bocadinho pelo seu lado humano, para revelar um pouco a personalidade de um homem, nuns tempos em que os jovens estavam no fim da fila – era uma sociedade de adultos e para os adultos – ao contrário dos nossos dias em que os jovens assumem o topo da hierarquia à nascença, não sei se bem se mal. Sei que as gerações do meu tempo terão particulares responsabilidades nesta inversão radical de valores, no seu anseio de cortar a todo o custo com as amarras que a sufocavam. Mas isso é outra conversa.

Numa daquelas noites escaldantes da Rua da Portas de Mértola com os meus 12 ou 13 anos, pergunta-me o Sr. Luís Cunha conhecedor daquele empolgamento pela caça, “queres ir amanhã comigo ao Pego do Corvo à Barriga Negra?”. Era o mesmo do que perguntar à fome se tinha vontade de comer! Caramba, às 3 horas da manhã já lá estava à porta de casa dele, pois não tinha conseguido pregar olho! Era o meu primeiro dia de caça com que tinha sonhado tantos anos!

Mas o melhor ainda estava para vir. Deixou-me levar a espingarda até ao Pego do Corvo, fizemos a “taimeira” e fiquei de dedo no gatilho à espera que elas chegassem. Que excitação caramba! Mas as maganas não apareceram. Felizmente para elas e para mim... Eram umas aves do tamanho de uma perdiz, muito esquivas que se deslocavam em bando, com um bater de asas muito duro e barulhento, muito raras e de peito negro. Possivelmente com o abandono da agricultura extinguiram-se também, assim como o “Algrevão” (Alcaravão), uma ave média, rara também e muito solitária, de pernas muito altas e que até servia para “alcunhar” este ou aquele que tivesse a perna mais longa “ até parece um “algrevão”.


Perante a minha desilusão diz-me o Sr. Luís Cunha no regresso, “deixa lá, vamos aqui pelo cerro da Mina e se aparecer alguma perdiz atira-lhe que a gente diz que foi tiro à Rola e levamo-la escondida”. Ele sabia o prazer que me dava prolongar aquele momento de fascínio “mascarado” de caçador. Mas nada...nem uma. Menos um problema de consciência para resolver, digo eu agora. Tinha sido o meu 1º dia de caça a sério mas foi o último também. Graças ao amigo Luís Cunha que tinha um olhar diferente sobre a juventude.

(*) Ainda me lembro do Álvaro “Pandareta” e da sua bicicleta “prega-saltos” para distribuição do correio, do Manel “Arrana” (Manel diz lá “a rã”, “arrana” dizia o Manel, contava o meu pai), do Henrique “Chapa de Aço”, do Manel Botelho, do Zé Pedro e das “suas” belas pintoras dinamarquesas, do Dimas, do Rui Simão, do Rui Valério, do Rogério Trindade meu padrinho e a quem devo o nome. Perdi-lhe o rasto. Sei que foi a sua homenagem ao grande advogado democrata e jornalista lisboeta da 1ª metade do séc. XX Amílcar Ramada Curto. Dizia-se em surdina que tinha fugido para a Rússia e que era locutor na Rádio Moscovo. Nunca consegui confirmar se foi verdade ou imaginação popular, pois também me aconteceu quando desertei nos finais da década de sessenta, “ter ido fazer a Guerra da Argélia” contra os franceses, que tinha acabado 10 anos antes, ou de me terem visto disfarçado em Sanlúcar onde nunca pus os pés, para visitar os meus pais...
O velho Valério – grande conversador, grande tagarela – enquanto foi vivo sempre me chamou Amílcar Ramada Curto e assim chegaram os Amílcar a Alcoutim. Ainda lá mora o meu afilhado Amílcar Teresa.
Naturalmente que me lembro também daqueles que de uma maneira ou outra, nunca cortaram o cordão umbilical com Alcoutim como o Zé Cavaco irmão da Prachedes, o Manel Justo, o Joaquim Rita, o Carlos Manuel, os meus tios Zé e Alfredo Afonso, o Zé e o Alfredo Martinho, os diversos manos Balbinos, o Euleutério e o irmão, o Manel Peres e o Justino, os Baptistas, o meu compadre António da Teresa, o Gaspar Santos, o Carlos Brito, o Fernando Dias e o irmão João Dias etc. Uma geração brilhante que Alcoutim não soube aproveitar! Aproveitou o país. Possivelmente devo ter esquecido algum nome e acrescentado um ou outro nome que não são da mesma fornada, mas quase que me atrevo a afirmar sem receio de errar, que saiu dali a melhor colheita que Alcoutim produziu no século XX quer do ponto de vista profissional, apesar dos parcos meios e oportunidades de que dispuseram de um modo geral, quer pelo empenhamento social de que tantos deles deram provas e em tempos tão difíceis! Um bom tema para a pena “afiada” do nosso amigo Gaspar Santos!