terça-feira, 11 de maio de 2010

Os proscritos da história!






Escreve
Amílcar Felício



Se tivéssemos que definir uma das características principais da sociedade alcouteneja até à década de sessenta do século passado, necessariamente teríamos que mencionar a sua expressiva componente camponesa. E se lhe acrescentarmos o conjunto significativo de Montes do Concelho, que baseavam toda a sua economia na agricultura e pastorícia e na sua ligação/dependência a Alcoutim, animando toda a rede de Comércio e de Serviços Públicos existentes na Vila, poderemos avaliar com maior rigor a importância que a agricultura representava no Concelho. Tratavam-se sobretudo de pequeno campesinato, mas também de algum médio campesinato e muitos assalariados que de seu só possuíam os braços.

[A Vila de Alcoutim vista do Norte. Foto JV]

Os próprios comerciantes em Alcoutim eram de um modo geral proprietários de terrenos como os Rosários, os Simões, os meus próprios pais, proporcionando trabalho temporário em determinadas épocas do ano e alguns deles associavam mesmo o comércio à agricultura com autênticas Casas de Campo, como era o caso do Sr. Serafim que empregava alguns assalariados durante o ano inteiro. Também era frequente funcionários públicos possuírem pequenos hortejos e pomares dando trabalho a muita gente, como o professor Amaral, diversos Guarda-Fiscais reformados e até pequenos empresários como o Sr. Zé Emídio com razoáveis courelas para cultivo de cereais.

[Fraca seara dos nossos dias. Foto JV, 2006]

Existiam por outro lado famílias inteiras, que viviam exclusivamente ou quase exclusivamente do campo como os Soeiros, o Ti Mário, a Tia Custódia Peres, o Ti Domingos da Lourinhã, o Ti Alfredo das Portas (meu avô), o Sr. Peres, os Caimotos, o Sr. Luís Corvo com os seus pomares e os caseiros na Eira Branca, o Sr. Vidal e a Tia Libânia, o Ti Gato do Rossio, o Sr. Robalo, o Brejo, os Brandões, o Ti Zé da Horta, o Ti Perdigoto, os Barões etc., etc., etc., em que muitas delas para lá da própria família, empregavam verdadeiros assalariados a tempo inteiro – os “criados” como se dizia na altura – como o Ti Zé Revés ou o Ti João Borralho por exemplo.

Sem esta forte vertente camponesa activa até finais da década de cinquenta/princípios da década de sessenta e não existindo naqueles tempos outras ajudas ou qualquer tipo de preocupações com a desertificação do interior como as que começaram a existir pós 25 de Abril, Alcoutim certamente teria colapsado. Estou convencido de que hoje seria uma Vila Fantasma.

[As várzeas da Lourinhã. Foto JV, 2010]

O Guadiana era a “grande estrada” quer de saída quer de entrada de pessoas e mercadorias até finais da década quarenta e a “ponte natural” de ligação a Sanlúcar e a Espanha. Quem não se lembra da visita diária do Gasolina e da sua figura típica “o Fashenita”? Seria interessante revisitar a crónica de Gaspar Santos de 24 de Janeiro para avaliarmos melhor a importância histórica do Guadiana neste aspecto. Servia também de sustento a meia dúzia de famílias que dele viviam, gerando diversas profissões como Pescadores, Arrieiros, Pregoeiros, Barqueiros, Guarda-Rios e naturalmente durante algum tempo Contrabandistas, Guardas-Fiscais e Apalpadeiras. Mas o Guadiana foi sempre visto como uma “mina de ouro” para quem olhávamos sem saber bem o que lhe fazer.

Se elencarmos outras profissões vocacionadas para a satisfação de necessidades mais “urbanas” poderemos referir a Carpintaria (o Mestre Pinto), Carteiros (o Ti Justo), Guarda-Fios (o Sr. José Custódio ou o Sr. Santos), Barbeiros que também faziam o papel de Cabeleireiras (o Ti Carrolino ou o Mestre João Ricardo), Varredores (o Ti Barão ou o pai da Dª Maria Tomásia), Enterradores (o Sr. António Francisco mais conhecido pelo Escanhol (sic) por ter vivido longos anos na Andaluzia), Professores (a Dª. Clarisse Cunha e os professores Trindade e Amaral), Alfaiates e Costureiras, Calceteiros e Pedreiros, Caiadores e Caiadeiras, Lavadeiras, alguns Taberneiros e pouco mais.


[A saudosa professora D. Clarisse Cunha]
Mas a grande panóplia de ofícios e profissões/ocupações entretanto extintos existentes em Alcoutim e no concelho, só foram possíveis graças àquele forte vector económico ligado ao campo e de que destaco os Enxertadores (ainda há poucos anos falei carinhosamente com um deles), Capadores (o Sr. Teixeira pai da Rosairinho), Ferreiros e Ferradores, Amoladores (o Ti Chapa de Aço), Ceifeiros e Mondadeiras, Apanhadeiras de amêndoa, azeitona e alfarroba, Lagareiros, Cardadores e Tecedeiras, Pastores, Leiteiros e Fabricantes de Queijo e Almece, Apicultores produtores de Mel e Água-Mel, Padeiros (o Sr. Munhós) e Boleiras (ai os bolos e o nógado da Tia Ana Brandoa que perdição!), Talhantes (o Ti Pimenta ou o Ti Guerreiro), Caseiros, Rendeiros, Aguadeiros e tantas outras profissões em que a maior parte da produção se destinava àqueles que trabalhavam no campo como Latoeiros e Sapateiros. Quem não se lembra das célebres “botas cardadas” e dos “ceifões” que os camponeses usavam e que era um dos principais produtos fabricados pelos Sapateiros de Alcoutim? Ou dos cântaros de lata para transporte de azeite ou leite e dos alcatruzes da nora ou da velha Caldeira para regar ou para ir ao Pocinho?

[Amendoal abandonado. Foto JV, 2010]

Por outro lado, os embriões de indústria que existiram em Alcoutim e no concelho ou serviam directamente a agricultura como a velha Forja (desaparecida em combate: existe apenas o local onde laborou!), ou provinham da sua produção como o Lagar de Azeite em Alcoutim e a Moagem no Pereiro desactivados há muito mas ainda existentes quer um quer outro, sem contar com aquelas verdadeiras relíquias “pré-indústriais” actualmente em ruínas e tão familiares para alguns de nós, como os Moinhos de Vento da Corte da Seda do Ti Coelho, ou os da Corte do Tabelião (penso que gerido pelo Ti Costa (*) pai da Tia Ana mulher do Ti Lázaro, se a memória não me falha) mais antigos ainda e o Moinho dos Cadavais – moinho de água – muito mais antigo, próximo da actual Barragem do lado direito de quem se dirige para o Pego do Corvo e de que resistem sólidas ruínas, reveladoras de muitas décadas de laboração.

Não poderemos deixar de referir também o antigo Celeiro/FNPT (Federação Nacional dos Produtores de Trigo) que dava emprego a 2 ou 3 pessoas, organismos concelhios criados pelo Estado Novo em 1933 na sequência da célebre Campanha do Trigo de 1929. A talhe de foice e ao contrário do que o nome possa sugerir, não se tratavam de Associações Voluntárias dos Produtores, mas sim de instituições públicas em regime de exclusividade que compravam, armazenavam e colocavam o trigo no mercado.

[O antigo "Celeiro". Foto JV, 2010]

O próprio Guadiana enchia-se de vida com os enormes barcos de guano (“Nitrato do Chile”) que todos os anos davam trabalho a dezenas de alcoutenejos quer na descarga, enchendo todo aquele enorme espaço junto ao Cais Novo, quer no transporte por camião ou carroça para as diversas povoações do concelho.

Apraz-nos registar que Alcoutim não esqueceu algumas das classes mais características do seu dia-a-dia de outrora, principalmente com actividades ligadas ao rio como Pescadores, Contrabandistas e Guardas-fiscais, preservando a sua memória com belas estátuas nos sítios mais adequados. Desconheço naturalmente o critério que presidiu à concretização dessa escolha. Possivelmente a aposta no turismo como factor de desenvolvimento sendo o Guadiana o motor desse futuro desenvolvimento.

Mas como foi possível esquecer a classe mais representativa de Alcoutim e do Concelho e os seus obreiros por excelência – os camponeses – que transformavam anos e anos a fio os cerros de Alcoutim em autênticos Jardins à beira-rio plantados, que extasiavam os nossos olhos de criança? [Antiga Fonte Primeira, actual Praia Fluvial]

Existirá algum alcoutenejo que não tenha na sua ascendência até aos avós uma costela camponesa?
Façam turismo, mas por favor não apaguem da nossa memória a principal matriz do nosso passado!

Que bem que ficava no centro da Fonte Primeira uma estátua perpetuando a memória desses valentes com o seu velho burro pela arreata (infelizmente já extinto também), homens de corpo inteiro e que de mãos quase vazias, enfrentaram um mundo tão adverso sem um pingo de revolta!


(*) Este homem punha em causa o movimento giratório da Terra com uma lógica implacável e impossível de contraditar. Dizia ele: “ Vão contar estórias a outro! Se a Terra girasse amigo, bastava-me levantar os pés para chegar ao Moinho: nem me cansava, nem gastava as cardas das botas!”