terça-feira, 16 de março de 2010

Os antigos privilégios alcoutenejos vistos através das Memórias Paroquiais (1758)

[A Vila de Alcoutim vista por Duarte de Armas]

No nosso trabalho ALCOUTIM, Capital do Nordeste Algarvio (Subsídios para uma monografia), 1985, enumerámos da pág.153 a 178 aquilo que na altura considerámos serem privilégios concelhios.

A abordagem que hoje vamos fazer nada tem a ver com essa.

[Un aviso de 18 de Janeiro de 1758 do Secretário de Estado dos Negócios do Reino, Sebastião José de Carvalho e Melo, fazia remeter a todos os párocos do reino os interrogatórios a que tinham de responder]

Depois de conhecermos e tentar ler e interpretar o seu conteúdo, procurámos reunir as respostas que os párocos das então seis freguesias do concelho deram aos quesitos 17 e 22.

O quesito 17 é feito nos seguintes termos: Se é couto, cabeça de concelho, honra ou behetria?
Quanto ao 22 pergunta o seguinte: Se tem alguns privilégios, antiguidades ou outras cousas dignas de memória?
Às actuais cinco freguesias juntava-se na altura Cachopo, mais tarde (1836) passada para o concelho de Tavira, onde se encontra.

Vamos então ver as respostas que deram os párocos que responderam ao inquérito quanto aos privilégios existentes (quesito 17).

Alcoutim - É cabeça de concelho e é couto, tanto no criminal, como no cível: São privilégios que os Reis concederam e confirmados por muitos Reis para se acoutarem na dita vila, trinta homiziados no criminal, como (caso) não sejam de lesa-majestade, sodomia, heresia, esta foi concedida por El-Rei D. Afonso V, mas não está em muito uso; este Rei mandou conceder a esta vila este privilégio assim como se tinha concedido à Antiga Mértola; mas com diferença que em Mértola servia o couto para cinquenta homiziados e Alcoutim para trinta.
E no cível por dívidas para outros trinta; no cível foi concedida esta mercê por El-Rei D. Dinis – em cujo tempo era esta vila uma povoação e assim fala o mesmo Rei – a minha póvoa de Alcoutim – mas sempre é antiga vila, porque o Senhor D. Afonso V lhe chama concelho de Alcoutim e de então para cá se intitular vila de Alcoutim.




[D. Afonso V]

GiõesNão se sabe que seja couto, cabeça de concelho, Honra ou Beetria, salvo como comparte do termo de Alcoutim participa de algum privilégio da dita vila, tendo-os.

Martim Longo E por esta mesma razão pertence ao couto que goza por privilégios Reais e antigos a Vila de Alcoutim.

PereiroÉ couto porque muitas pessoas de fora, carregados de dívidas ou de outras vexações vêm à vila de Alcoutim e se sujeitam, fazendo termo na Câmara, a que chamam, graça (?) de burlão e por isso não podem ser citados nem obrigados a pagar as tais dívidas.

VaqueirosTodo este termo é couto para os que falidos de bens se acolham nele pelo privilégio de Beetria (?)

CachopoQue ainda que alguns dizem que este lugar de Cachopo logre os privilégios de ser couto, contudo não consta nem se descobrem fundamentos certos para assim se observar, e somente o apelidam por certo em razão de o ouvirem aos seus progenitores e não por sólida e fundamental razão que para isso tenham.
Contudo outros afirmam que constam os seus privilégios dos livros da Câmara da Vila de Alcoutim.

Ainda que as respostas dadas tenham níveis diferentes, dependendo do conhecimento do assunto, do interesse de quem respondeu e até do tempo de permanência na paróquia, poderá concluir-se que o concelho de Alcoutim nessa altura gozava do privilégio de ser couto no crime e no cível, o primeiro concedido por D. Afonso V e o segundo por D. Dinis.

[D. Dinis]

Analisemos agora as respostas dadas ao quesito 22 que procuram referir mais qualquer outro privilégio.

O pároco de Cachopo escreveu Que não consta haver privilégios (...), o de Giões alinhava pelo mesmo diapasão, Não tem privilégios (...), enquanto o de Martim Longo afirmou: Este lugar da freguesia de Martim Longo não consta que tenha privilégios ou antiguidades, mas tão só os que goza o Couto da Vila e termo de Alcoutim (...).
São de outro nível as respostas dos três restantes.

O pároco do Pereiro encontrou alguma coisa, escrevendo: Tem esta freguesia e todas deste termo privilégio de se não fazerem soldados, por se acharem na Câmara da vila provisões dos Senhores Monarcas antigos que lhes concederam essa graça.

O conhecimento deste privilégio chegou aos nossos dias.

É muito interessante a resposta que o Cura de Vaqueiros deu e que numa transcrição livre, aliás como todas as outras, aqui faço: Dizem os antigos que este termo tinha muitos privilégios concedidos pelos Senhores Reis, como eram não se fazerem soldados, nem ainda auxiliares neste termo, de não se darem cavalgaduras para carruagens e de se não pagar portagem nem real de água e o de não serem obrigados os seus moradores a possuir cavalos e ainda outros mais, que todos estão derrogados por incúria e negligência da Câmara porque espera quarenta anos que houve notícias que estes privilégios estavam em Lagos na secretaria do Conde General deste Algarve e apenas se acham em vigor o das beetrias, o da homenagem concedida a todos os filhos do Algarve.
Para o leitor que não conheça, damos a seguir uma breve indicação recolhida em dicionários específicos, do que eram esses privilégios.

Portagem – Imposto que incidia sobre a compra e venda de mercadorias (uma espécie do actual IVA).

Real de água – imposto sobre a carne, o peixe e o vinho.

Beetria – povoação ou território onde, na Idade Média, os homens auferiam do privilégio de escolher o seu senhor, que o defendia e protegia as suas liberdades. Até ao reinado de D. João I, as beetrias eram conhecidas como coutos ou honras.

Homenagem – Cerimónia que faz parte do contrato feudo-vassálico e processa-se após a homenagem, na qual o vassalo, de pé e com a mão no Evangelho, daí a religiosidade da cerimónia, jura fidelidade ao seu Senhor.

Falta-nos referir o testemunho do prior de Alcoutim, o que nos apresentou maiores dificuldades na leitura.
Lemos o seguinte:- Os Privilégios que tem, ou antiguidades, são já os acima declarados; outros muitos dizem que havia mas não há clareza deles, pois é senso que só com esses favores podia aqui haver habitação, por ser terra sem desafogo cercada de serros sem outro alívio mais que a vizinhança do Guadiana e sendo esta vila tão vizinha e fronteira a uma vila de Castela e em tempo de Guerras de tão perigosa habitação. É certo e o clama, a voz comum deste povo de Alcoutim que muitos privilégios havia os habitadores desta vila e seu termo e o mesmo povo de Alcoutim se queixa de alguns Provedores do Algarve os terem sumido/como sucedeu no ano de 1747, porquanto ter o Senhor D. Pedro II Rei de Portugal que Santa Glória haja, como [na altura] Senhor do Estado do Infantado feito mercê aos pobres moradores de uma pouca de terra para os pobres sobreditos semearem todos os anos alguma coisa para ajuda da sua passagem no dito ano, sendo Provedor de Tavira o Doutor Manuel Gonçalves de Carvalho e vindo a esta vila a tombar [arrolar] e a fazer os bens do concelho, por ordem que para isso tinha de Sua Majestade, não fez nada mais que obrar (?) tudo contra as ordens que trazia e deixou os pobres privados da mercê referida; porquanto os bens do concelho ou do couto deixou como de antes estavam sem os (...) nem tombar; e os bens do Infantado, como era esta esmola aos pobres moradores desta vila, tombou e o fosse com toda a impiedade; e querendo os pobres reclamar e fazendo requerimentos tiranamente os não ouviu e cruelmente os ameaçava com prisões de que os pobres desmaiados e destituídos de socorro com esperanças de que representando ao Senhor Infante esta injustiça por todas as razões (... ...).
Esta foi a resposta que o pároco de Alcoutim deu à pergunta 22.

[D. Pedro II que quando Infante foi Senhor da Casa do Infantado]

Dá para perceber o fundamental: os bastantes privilégios que a vila e o termo possuíram e as razões que levaram a isso, numa zona de frequentes conflitos fronteiriços e onde era imperioso fixarem gente. Por outro lado e pertencendo Alcoutim à Casa do Infantado, o então filho segundo de D. João IV, como Senhor dessa Casa, concedeu aos pobres de Alcoutim terrenos para agricultarem, procurando minorar as suas faltas.

O Provedor de Tavira, do qual até consta o nome, acabou com o privilégio e quando o povo naturalmente reagiu, ripostou tirana e cruelmente, ameaçando-os com a prisão, não lhes deixando apresentar as suas razões.

Admito que esses terrenos fossem os do antigo rossio, muito antes de começarem as mutilações que o liberalismo motivou.


Os coutos foram extintos em 1790 e os outros privilégios por decreto de 10 de Abril de 1821.