quinta-feira, 11 de março de 2010

Atribulada pesca ao candeio

Pequena nota
Mais um quadro da vida real alcoutenense que nos traz Gaspar Santos com o realismo da sua escrita.
O episódio lembrado que podia ter tido consequências graves se não fosse o conhecimento destes dois pescadores do rio nascidos e criados na vila.
Conheci ambos mas tive mais contacto com o Manuel, um homem muito trabalhador e de grande bondade.
Por outro lado, devo ao Chico Balbino as informações sobre a pesca no rio e que me possibilitaram escrever sobre ela, no nosso trabalho vulgo “Monografia de Alcoutim”, o que refiro e agradeço a pág. 85.

JV






Escreve
Gaspar Santos


Gostávamos de pescar ao candeio. Ia muitas vezes com o Zé Pedro na lancha do Senhor António do Rosário. Desta vez fui com o José Cavaco Peres e a lancha era do Senhor Ribeiros, que viria mais tarde a ser sogro da Maria Angelina. Queríamos pescar na curva do rio a norte da Lourinhã. A noite estava serena e como a água em fim de enchente da maré corria pouco, não deitámos a “âncora” (uma pedra para não encalhar). Iniciámos a pesca. Na proa, provida de farol, um de nós empunhava a fisga enquanto o outro, deslocava o barco à procura dos peixes remando suavemente para não os alarmar.

[Antigos barcos de pesca atracados ao cais velho, década de 60 do século passado. O da direita era de Manel Balbino. Foto JV]

Em noites favoráveis o peixe muge “entra” tranquilamente, quase com o lombo fora de água, na zona iluminada à proa da lancha. O pescador selecciona um peixe de cada vez e fisga-o (arpoa-o). E, sem nunca largar o cabo de cana da fisga (arpão de 12 a 18 dentes), esfrega a fisga num banco do barco deixando o peixe a sangrar no fundo da lancha.

Mas nessa noite nada se passou assim. A maré virou e começou a correr cada vez com mais velocidade. O mesmo aconteceu com o vento fraco do Sul que começou a robustecer. Estes dois fenómenos, actuando em sentidos contrários sobre as águas, começaram de pouco a pouco a balouçar com mais força a nossa “casca de noz”. Era talvez a lancha mais pequena de todo o Baixo Guadiana. E nós continuávamos a tentar pescar o impossível, com a lancha aos saltos na crista das ondas, sem vislumbramos qualquer peixe. Era uma aventura de trapezistas sem rede, mas confiantes pois éramos bons nadadores.

Relativamente próximo de nós pescavam dois profissionais. Os irmãos Chico Balbino e Manuel Balbino, estes sim com uma lancha poderosa. Aproximaram-se de nós e ordenaram com voz que não admitia contraditório: “Amarrem essa lancha à nossa e venham aqui para dentro! Vocês não vêem que se afogam?!”

[Fisga centenária de fabrico local. Foto JV]

Nós ainda tentámos resistir, mas a ameaça veio a seguir: “Se não vêm levam com um remo!” e, de facto, o remo já estava no ar. Perante isto e, dada a experiência deles e a confiança na sua amizade, nós obedecemos. O temporal era cada vez maior. Mais vento e maior a corrente de água que, correndo em sentidos opostos, mais revoltavam as ondas.

O Chico e o Manuel Balbino, este o porta-voz da equipa, deram-nos uma lição de solidariedade, na verdade com alguma violência à mistura. Comportaram-se como homens do mar, verdadeiros comandantes.

Não se pense que esta pesca no Guadiana é sempre assim perigosa. Pelo contrário, é muito segura, muito interessante e gozando-se ainda da agradável frescura durante as cálidas noites de Verão. Mas o relato deste episódio serve para introduzir o tema desta pesca, hoje praticamente em extinção, que queremos tratar com profundidade em próxima oportunidade e...

Para recordar estes dois amigos que, há anos, já não estão entre nós.