sábado, 28 de novembro de 2009

A Casa Assombrada

Pequena Nota
Desconhecia completamente esta interessante "estória" que o nosso colega e colaborador nos transmite com tão realismo.
Igualmente nunca tinha ouvido falar como casa assombrada, ainda que conheça a "estória" de um capitão de nome Aragão que durante as "guerrilhas" foi assassinado perto de Afonso Vicente onde se lhe levantou um calvário já desaparecido, mantendo contudo a zona a designação de eira da CRUZ devido a esse facto.
JV

Escreve
José Temudo


[José Temudo, Secretário de Finanças]
A Repartição de Finanças, que o meu Pai chefiava, funcionava num edifício a que os alcoutenejos chamavam “a casa do Capitão-Mor”. Era uma construção relativamente grande, rectangular, de dois pisos. Foi levantada, assim o presumo, num período que se pode situar entre a segunda metade do século XVII e o primeiro quartel do século XVIII, para residência do comandante das forças aquarteladas no castelo. Tinha um aspecto sólido e digno, de harmonia com a condição de quem o ia habitar.

Diziam os habitantes de Alcoutim, e parecia acreditarem no que diziam, que a alma de um Capitão-Mor aparecia, de vez em quando, naquela casa. Já não me lembro da razão por que esta alma penava, o que terá feito ou deixado de fazer neste mundo para que não encontrasse descanso no além.

E vamos à “estória” que quero contar.

Em certas épocas do ano, por razões de serviço, o meu Pai costumava ir, depois do jantar, trabalhar para a Repartição, onde permanecia até tarde, por vezes, até para além da meia-noite. Como não acreditava em almas do outro mundo, sempre ouviu, divertido, os avisos dos que o desaconselhavam a ir sozinho, de noite, para a casa do Capitão-Mor. Um dia, porém, ... ... ...vejamos o que lhe aconteceu!

[A Casa do Capitão-mor onde funcionaram os serviços da Repartição de Finanças e da Tesouraria da Fazenda Pública. Foto JV, 1967]

Numa noite de Inverno, ainda nós não nos tínhamos deitado, o meu Pai irrompeu casa dentro, esbaforido, sem sobretudo, nem chapéu, e com uma tal expressão no rosto, que minha Mãe, sobressaltada, lhe perguntou:

“Que se passa contigo, homem, que parece que viste um fantasma?”

“Ver, não vi, mas ouvi passos e não vi quem caminhava”, respondeu meu Pai.

Já transido de medo, fui-me chegando a minha Mãe, enquanto o meu Pai ia contando o que se tinha passado:

“Já o serão ia a meio, quando bateram à porta; fui abrir. Era o Braz Lopes.” (Braz Lopes era o Tesoureiro da Fazenda Pública que, nessa noite, também tinha ido fazer serão na Tesouraria, situada no rés-do-chão do edifício).

“Vou para casa” disse ele. “Já chega de trabalho por hoje. Você ainda fica?”, perguntou.

“Fico”, disse-lhe, “vou acabar o serviço que tenho entre mãos. Amanhã é dia de correio e tenho de o mandar para Faro, que a Direcção já mo pediu.”

Conversámos ainda durante uns breves minutos. Quando nos despedimos, recomendei-lhe:
“Por favor, não se esqueça de bater a porta à saída.”

E voltei a concentrar-me no que estava a fazer. Passados uns minutos, a minha atenção foi desviada para o que me pareceu ser um rangido de porta a abrir-se.

Julguei que o Tesoureiro tivesse voltado a entrar e perguntei:

“Você voltou, Braz Lopes?” (*)

Como não tivesse obtido resposta, voltei a concentrar-me no que estava a fazer, na convicção de que o que ouvira podia ter sido causado pelos ratos no arquivo.



Mas, não tardou que a minha atenção fosse novamente perturbada. Desta vez, pareceu-me ouvir pessoa na sala grande, reservada aos outros funcionários.

“É o maroto do Braz Lopes a querer divertir-se à minha custa”, pensei. E já entre alguma intranquilidade e não menos irritação, fui dizendo:

“Deixe-se de brincadeiras, homem! Eu preciso de acabar isto e não quero ficar aqui a noite inteira.”

Não obtive resposta, mas deixei de ouvir os passos ou qualquer outro ruído. Porém, depois de uma breve pausa, o que passei a escutar, tirou o que me restava de tranquilidade; era como se alguém andasse de secretária em secretária, abrindo e fechando as gavetas. Já com o coração aos pulos, aproximei-me, receoso, da porta que dava para a sala onde tinha ouvido os ruídos. Ergui o petromax acima da cabeça e procurei vislumbrar a causa do barulho. Mas a luz a luz era fraca e o que vi foram sombras em movimento, fantasmagóricas. Foi quanto bastou para que todo o meu ser aceitasse o que, até àquele momento, recusara: a existência de almas do outro mundo, neste caso, a alma penada do capitão-mor. Entrei em pânico e, tão depressa quanto mo permitiram as minhas fracas pernas, atravessei a sala, larguei o candeeiro em cima do balcão e desci os degraus das escadas de pedra, a dois e dois, e só parei quando entrei aqui em casa e fechei a porta atrás de mim!

[Praça da República. Anos 60]

No dia seguinte, já mais calmo, caiu em si e riu, gostosamente, da situação ridícula por que tinha passado. E continuou a fazer serões na casa do Capitão-Mor, sem receio de nova aparição daquela alma penada.

O meu Pai era um homem inteligente e culto que não acreditava em almas do outro mundo. Mas houve aquele momento em que a conjugação de diversas circunstâncias abriu uma fenda na muralha das suas convicções, por onde irromperam, impetuosas e avassaladoras, provocando-lhe o desequilíbrio emocional, a superstição e a crendice populares, numa palavra, a irracionalidade.

A “estória” termina aqui.

Para além dela, gostaria de saber se o fantasma do Capitão-Mor continua a aparecer aos que, atrevidamente, frequentam, altas horas da noite, os domínios que são seus.

Vila do Conde, 16 de Novembro de 2009.

Nota do responsável pelo Alcoutim Livre (*) Braz Lopes era natural de Alcoutim tendo-se transferido para o concelho de Peniche em 1934. Foi promovido à 2ª classe e colocado no concelho de Lagos - D.G. nº 4-II Série, de 5 de Janeiro de 1935.Veio a falecer nesta cidade ainda novo.