sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Alcoutim não vem no mapa

Pequena Nota
Apresentamos mais um belíssimo texto deste nosso colaborador que além de algo para nós completamente desconhecido, revela outra faceta importante da sua escrita.
Penso que posso em nome dos visitantes/leitores apresentar-lhe o nosso agradecimento pelo conteúdo e beleza do texto.
J.V.

Escreve
José Temudo

Alcoutim era, em meados da década de trinta do século passado, uma vila semelhante a tantas outras do interior, de norte a sul do País.

Vila pequena, rural e pobre, viu o tempo e o progresso passarem-lhe ao lado sem lhe deixarem marcas visíveis.

Alcoutim era o retrato levemente retocado do que fora no século XIX. As mesmas casas, as mesmas vias de comunicação, os mesmos meios de transporte, a mesma iluminação pública e doméstica, a mesma falta de saneamento básico e de distribuição de água ao domicílio, a mesma falta de oferta cultural e de animação social.

[Praça da República, anos 60]

Sem indústria, com um comércio primário e uma agricultura não mecanizada e relativamente pobre, esquecida pelo poder político e sem meios próprios capazes para modificar fosse o que fosse, a vila de Alcoutim, abúlica, parecia dormitar.

Conscientes deste estado de coisas e certos de que as instâncias políticas superiores continuavam surdas aos seus apelos e petições, um pequeno grupo de pessoas gradas do concelho resolveu montar uma pequena e ligeira “farsa” na convicção de que, brincando, os seus queixumes pudessem surtir melhor efeito. Assim, resolveram escrever e enviar a um jornal de Faro a notícia de que o povo do concelho, não suportando mais o isolamento e o atraso em que vivia, se revoltara e se mobilizara, concentrando-se, com grande alarido, em frente do edifício camarário, para onde acorreram, sem demora e com manifesta preocupação, as autoridades e as figuras mais representativas dos diversos serviços civis e paramilitares (Guarda Fiscal e Guarda Nacional Republicana). Estabelecido o contacto e iniciado o diálogo com uma deputação de manifestantes, ouvidos os motivos da revolta e os seus anseios, as autoridades entenderam solidarizar-se com o povo e, em seu nome, proclamaram a independência do território de Alcoutim.

[Paços do Concelho, des. de J.V.]
A notícia era acompanhado de fotografias mostrando um grande aglomerado de pessoas em frente dos Paços do Concelho (fotos tiradas no dia da feira anual) e outras mostrando as chamadas autoridades, às varandas da Câmara, evidenciando os gestos que acompanham a retórica apaixonada própria da solenidade de um acto daquela transcendência.

Tudo isto me foi contado por meu Pai, já eu era um homenzinho. Desafortunadamente, não retenho na memória nem o nome do jornal, nem a data em que a notícia foi publicada, mas julgo ter sido Alcoutim não vem no mapa o título que a encabeçava.

Ganhou o concelho de Alcoutim algum proveito resultante da publicação desta inocente “farsa” ? Nada ganhou, a não ser a previsível irritação do poder político que bem depressa se manifestou.

[O redactor da notícia]

Por ter sido o redactor da notícia, o meu Pai terá sido o primeiro a sofrer-lhe as consequências: foi chamado a Faro e asperamente repreendido pelo seu superior hierárquico distrital. O que, com toda a probabilidade, terá acontecido, embora revestindo formas diferentes, a todos os participantes referenciados na notícia. E boa sorte tiveram em não terem sofrido castigo mais severo. O Estado Novo não gostava mesmo nada deste tipo de brincadeiras!

E não se falou mais no assunto. Alcoutim continuou, placidamente, a contemplar S. Lúcar, a mirar-se no Guadiana e a ver um ou outro navio de maior calado em viagem para o Pomarão ou de regresso a Vila Real de Santo António, com o porão carregado com o precioso minério de cobre.