segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Uma "insurreição" em Alcoutim





Escreve
Gaspar Santos




Tempos difíceis em Alcoutim nos anos de 1940 a 1945. Portugal não entrou na Guerra Mundial que estava a decorrer, mas participava no esforço de guerra fornecendo alimentos aos países beligerantes. Por isso havia rigoroso racionamento, aliado às carências financeiras e de transportes dos habitantes do concelho de Alcoutim.

A gestão do racionamento estava a cargo da Intendência Geral dos Abastecimentos.

Sendo o seu dirigente concelhio um tenente reformado do exército de nome Victor Manuel da Costa que residia nas Laranjeiras e era, então, também Presidente da Câmara Municipal de Alcoutim.

O escritório da Intendência Geral dos Abastecimentos era no rés-do-chão dos Paços do Concelho, tendo uma janela para a actual Rua do Município e outra para a rua que sobe na direcção da Igreja Matriz.


A maior parte das vezes um chefe de família obtinha da Intendência uma senha para dois ou três quilos da farinha de trigo ou de milho, que compraria depois num moinho a 5, 10 ou 15 ou mais km de distância da sua residência. O saco era trazido para casa às costas. Para obterem essa senha tinham que tomar lugar na fila muitas vezes ao pôr-do-sol. Dormiam ao relento para não perderem a sua vez. Estas pessoas estabeleciam para o dia seguinte o início da fila na janela que tinha funcionado nesse dia.

Vi muitas vezes esse “espectáculo” quando vinha de regresso com minhas irmãs que acompanhara ao baile.

Algumas vezes, dependendo do humor do tenente Victor, a janela em que os funcionários começavam a dar as senhas era aquela em que não havia fila. As pessoas tinham que se reorganizar de novo o que por vezes não era fácil e levava a que os mais espertos enganassem os outros na ordem da fila. Não era só o tempo de espera que estava em causa – isso até era o menos. Acontecia que muitas vezes o stock de géneros se esgotava e a noite passada ao relento revelava-se infrutífera. Originavam-se conflitos entre os homens, chegando até a haver pancadaria. Cenas que deliciavam o tenente Victor que gostava de ver o povo em aflição.

Mas um dia, quando o tenente Victor anunciou: hoje as senhas não são dadas nessa janela, são na outra, destacaram-se vários homens à frente dos quais o Alberto pescador e outros pescadores dos Montes do Rio. Foram na direcção do tenente e gritaram: as senhas são dadas nesta janela ou nós partimos isto tudo!

O tenente mandou prender os três homens que se tinham destacado, e, considerados como presos políticos estiveram mais de um mês fora de suas casas. Não satisfeito com essas prisões, nesse mesmo dia, pelo telefone, pediu reforços ao Governo Civil. A G.N.R. de Tavira arrancou para Alcoutim com uma força de cavalaria para debelar a “insurreição”.

Já a força da G.N.R. estava na estrada, próximo de Castro Marim quando os políticos não salazaristas de Alcoutim começaram a temer o pior: - mal entendidos, precipitações agressivas, prisões etc.
Francisco do Rosário foi falar com o Dr. João Francisco Dias de quem era amigo e disse: Dr. Dias, se a G.N.R. aqui chega as coisas podem complicar-se. Faça qualquer coisa. Ponha fim a isto. O Senhor tem prestígio e nunca fez uso dele de modo a esgotá-lo!!!

Convencido, o Dr. Dias telefonou ao Governador Civil de Faro e disse-lhe:
-Não há aqui nenhuma insurreição.

A seguir esclareceu o Governador Civil do que vinha acontecendo e deu-lhe as garantias que este lhe exigiu:

-Sim senhor, assumo a responsabilidade de que aqui nada de grave se passa e garanto a ordem pública.

Passado pouco tempo, por via telegráfica, o tenente Victor era exonerado de todos os seus cargos administrativos: Presidente da Câmara Municipal e Delegado da Intendência Geral dos Abastecimentos. Após o que foi nomeado Presidente da Câmara Municipal o professor José Maria Mendes Amaral.

E foi assim, desta maneira muito simples, que o Dr. João Dias terminou com esta “insurreição”.


Pequena nota

Mais um excelente texto do nosso Amigo e colaborador do ALCOUTIM LIVRE, Eng. Gaspar Santos que os nossos visitantes-leitores bem conhecem deste blogue.

Grande parte daquilo que aqui narra, já conhecia por conversas tidas ao longo dos anos com quem viveu esses tempos tão atribulados.

Os enredos existentes não eram bem conhecidos do cidadão comum, havendo sempre uma crítica mordaz para a maneira de executar as coisas.

Temos a sorte de ter um filho da terra que apesar da sua tenra idade olhava para as coisas com interesse, fixando-as e que com o avançar da idade e formação em variadíssimos domínios lhe possibilitam hoje escrever estes textos que bem nos ajudam a conhecer e a compreender o passado alcoutenejo.

JV