sexta-feira, 3 de julho de 2009

A fábrica de foices de Alcoutim

Qual o segredo da sua tecnologia??




Esceve:
Gaspar Santos





A casa dos meus Pais era muito perto desta fábrica. Bastava descer até ao largo da Igreja Matriz, virar à esquerda no sentido da Ribeira de Cadavais e sempre por essa rua chegava-se lá. A parte fabril era no fim da rua do lado esquerdo. Do lado direito da rua encontrávamos uma casa, onde o Sr. Francisco do Rosário acondicionava as foices.

Havia, ainda, uma pequena varanda/terraço onde quase todos os dias se regalavam com um petisco. Era a Sacrístia. Este lado direito da rua terminava num quintal de semeadura, onde o Sr. António do Rosário tinha uma criação de coelhos.

Era um local ruidoso. Um motor continuamente a trabalhar, pontuado pelo bater de martelos em bigornas, umas vezes dessincronizados, outras vezes sincopados em som alternado. Um cheiro agradável do petróleo queimado nesse motor e, sobretudo, o cheiro a alcatrão da hulha provindo da destilação do carvão de pedra ao arder.

Este local sempre despertou em mim, desde muito cedo, uma grande atracção. Uma das primeiras vezes que me aproximei para espreitar o que estavam a fazer, teria então 6 ou 7 anos, fui recebido com esta expressão: Anda cá meu malandro que te corto a p.....
Proferida pelo Sr. Manuel Francisco enquanto empunhava um facalhão que ele estaria a amolar. Este homem, trabalhador da forja, senhor de umas barbas pretas, não cortadas havia mais de um mês, e a mostrar devido a AVC o vermelho da pálpebra de um olho, tinha um aspecto temível. Era uma jóia de homem. Mas eu não sabia. Corri até minha casa à velocidade máxima que as minhas fracas pernas permitiam!!!















A marca de foices que aqui fabricavam era J. Rosário & Castellejos que chegou a ter uma enorme produção, mesmo só trabalhando metade do ano. Vendiam para todo o Algarve, Baixo e Alto Alentejo numa época em que todos os cereais eram ceifados à mão. Quando se deu o aparecimento das ceifeiras mecânicas esta fábrica fechou. São as consequências inevitáveis das revoluções industriais.

Esta marca de foices resultou da fusão, segundo creio, da firma Rosário com outra firma mais pequena da família espanhola Teixeira com instalações nas traseiras da Rua D. Sancho II. Foi assim que o herdeiro da segunda, Luis Fernandes Teixeira (vulgo Luis Ferreiro) passou a empregado da firma Rosário.

Nas aldeias de Pereiro, Giões e Martinlongo também se fabricavam foices. No entanto as da marca Castellejos tinham uma qualidade e um preço competitivos resultantes da particularidade de toda a foice (corpo e corte) ser uma só peça, ao contrário das outras que eram fabricadas com duas peças: uma folha arqueada a que se caldeava a parte cortante.

Não sei se era um segredo esta sua fabricação, mas o certo é que os outros concorrentes não conseguiam utilizar um só aço.

Onde estava o segredo? Era muito importante a foice ser uma só peça em vez de duas peças, dada a redução de tempo e consequentemente do trabalho de fabrico. Pretendiam os seus donos não ser um segredo desta fábrica. Não ocultavam como se fazia. O certo é que os concorrentes tentavam usar o mesmo aço único e as foices ao serem temperadas partiam-se. A firma inglesa fornecedora das barrinhas de aço, a dada altura, mandou um investigador ver como faziam por lhes interessar vender esse material a mais fábricas. O Zé Pedro sempre me disse, mesmo após o fecho da fabricação, que não havia qualquer segredo e, a mim que não era concorrente, ele não precisava de o ocultar. Mas o que é certo é que depois de verem todo o fabrico e em especial a fase da tempera que era onde poderia residir o segredo (??) experimentavam fazer igual e as foices depois de temperadas partiam-se como o vidro quando cai no chão.

[Rua S. Salvador, em Alcoutim onde funcionou a oficina. Foto JV, 2009]
A fábrica funcionava num barracão de alvenaria com telhado suportado pelo tradicional caniço, ao lado de uma outra casa que servia de armazém do carvão e do aço. Num primeiro compartimento havia uma forja provida de 2 foles de pele que forneciam o ar para activar o carvão na forja ou frágua. No telheiro maior estavam situados os outros postos de trabalho: duas pedras de amolar ou rebolos de arenito vermelho de Silves em que dois operários deitados de barriga para baixo amolavam as foices; o motor a petróleo que accionava essas pedras de amolar por meio de correias de transmissão; uma outra forja também com os seus dois foles; uma bancada para os trabalhos mais delicados de serralharia, e um posto de trabalho tipo cavalete com uma pequena bigorna de secção rectangular onde eram picadas as foices.

Eram muitos os passos por que passava o aço até ser uma foice.

Começava pelo corte da barrinha de aço. Esta tinha de comprimento vários metros, 2,5 cm de largura e 4 mm de espessura. A barrinha era cortada em vários pedaços obliquamente, para uma ponta ser inserida no cabo e a outra para ser a extremidade da foice.

Em seguida, na primeira forja dois homens (mestre Madeira vulgo Chapa de Aço irmão do barbeiro João Ricardo e outro homem) batendo alternadamente com os respectivos martelos no troço de barrinha aquecida ao rubro, moldavam-na de acordo com uma foice modelo (foice de homem, de mulher, foicinha e podão).

Depois a foice era desgastada/amolada num dos rebolos até à espessura adequada, após o que aguardava o passo seguinte, num tanque com água de cal para entretanto não enferrujar. Vi executarem este trabalho Manuel Francisco, José Pires, Joaquim do Rosário, Henrique, etc.

Um dos sócios da firma, António Madeira do Rosário picava a foice com um escopro especial e um martelo. Isto consistia na formação de um serrilhado que aumentava o poder do corte e o conservava com o uso. Trabalhava sentado num cavalete de tronco de árvore que tinha na frente uma pequena bigorna. A foice era colocada em cima da bigorna e fixada por correias de couro esticadas com os pés. Ele determinava se a foice era esquerda ou direita conforme o lado em que a picava, pois na ceifa as ranhuras do picado ficam sempre para baixo.

Na segunda forja a foice era levada ao rubro, gravada a marca, e depois era mergulhada num grande bidão com água e óleo para lhe dar a têmpera. (Vi nesta tarefa Luís Ferreiro e após a sua morte o José Francisco Rita vulgo Zé Pedro).
Após a colocação do cabo de madeira que era fabricada ao torno em Giões, as foices eram levadas para a casa do outro lado da rua para serem embaladas. Era ocupação do gerente/comercializador, Francisco Madeira do Rosário. Consistia no acondicionamento das foices em caixas de cartão, depois de a lâmina ser embrulhada em fita de papel.

Executavam por encomenda outros trabalhos, nomeadamente peças simples de ferro forjado como camas, ferros náuticos (âncoras), até peças mais delicadas para substituição de outras avariadas em espingardas de caça, instrumentos para cortar carne e, inclusive, as peças de corte de ferro das suas guilhotinas e tesouras que exigiam temperas especiais. Faziam a manutenção do antigo relógio (já substituído) que dava horas com badaladas no sino da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, relógio aliás que tinha sido concebido por um ferreiro do concelho.

Os anos 50 e 60 do Século passado foram para o concelho de Alcoutim, como para muitos outros concelhos do interior o fim do artesanato, o fim da agricultura cerealifera, a grande debandada da emigração, o começo da desertificação.

A fábrica de foices de Alcoutim era uma indústria, fabricava em série e em linha de montagem mas também fechou por essa época.

A mudança tecnológica para a ceifa mecânica, obrigou-a a fechar e, tal como o artesanato do concelho, não soube adaptar-se aos novos tempos e mudar o seu programa de fabrico, nem se manteve como oficina de serralharia e de ferros.

Penso que isso se deveu a que os seus proprietários já não tinham idade, nem paciência, nem saber organizativo para conceber alterações de fabrico, e, por outro lado, tinham outras actividades industriais e comerciais, não tendo por isso necessidade de continuar com outro fabrico reformulado. Entretanto ter-se-ia perdido todo aquele espólio?

Não sei se há alguma referência nos núcleos museológicos do concelho a esta actividade fabril ou mesmo à de tipo artesanal de que havia várias. Se não há referência, espero que ainda se lhe venha a dar o destaque devido.

[O Zé Pedro é o que está de pé. à direita.]
Finalmente uma referência ao amigo já falecido Zé Pedro que aqui trabalhou. Era neto da “Última Boleira” como lhe chama José Varzeano no texto do seu blogue dia 15 de Junho de 2009. Com poucos anos ficou órfão de Pai e Mãe e foi educado em casa do Senhor António do Rosário, começando desde muito novo a trabalhar na forja. Por morte do Luís Ferreiro assumiu com competência a responsabilidade da sua substituição. Foi durante muitos anos dirigente e praticante de futebol no Grupo Desportivo de Alcoutim.

[O Henry é o de fato branco]
No início dos anos 50 do século passado, um casal dinamarquês que pintava a óleo paisagens campestres hospedou-se na Pensão Madeira (edifício onde é hoje a Farmácia Caimoto), com os seus três filhos também pintores, Henry e duas irmãs muito bonitas, esbeltas e com um ar muito saudável. Estas jovens tal como o irmão gostavam de se divertir. Iam a todos os bailes e eram muito requestadas pelos alcoutenejos, alguns muito bem postos e engravatados. Mas...foi o Zé Pedro, por vezes todo enfarruscado do trabalho, quem teve o mérito e a felicidade de conquistar o coração de uma delas.
Pensamos que aqui estará a razão e o remetente da mensagem que a “Última Boleira” recebeu da Dinamarca e mostrou ao José Varzeano. O casamento, porém, não veio a verificar-se.