sexta-feira, 12 de junho de 2009

A construção do cais novo vista por nós

Pequena Nota

Mais uma vez temos o prazer de publicar um excelente artigo do nosso Amigo e Colaborador, Eng. Gaspar Santos. Trata-se do que viu uma criança inteligente, interessada e observadora, “traduzido” pelo técnico e homem maduro que nunca se esqueceu ter nascido em Alcoutim.

Este artigo que nos apresenta tantos pormenores, na simbiose técnica e mundana, é um valioso contributo para se perceber a envergadura daquela obra que só pecou por ser tardia mas que ainda hoje é uma mais valia importantíssima para a vila de Alcoutim e o seu concelho.

Ainda bem que insisti com ele para pôr no papel tudo o que a sua privilegiada memória guardou, que aparece realçado pela sua escrita a que dá um toque muito característico.

Poderá existir, mas não estou a ver outra pessoa que o pudesse fazer.

Ao que já escrevemos sobre o cais novo, hoje pode juntar-se este contributo importante.

Bem-haja por isso, Caro Amigo.

JV



Escreve:

Gaspar Santos



Os meus colegas de instrução primária e eu (entre os 7 e os 11 anos de idade) assistimos à construção do Cais Novo. Do primeiro andar da antiga Escola Primária víamos às vezes, com um certo arrepio e preocupação, o Eng. Godinho no topo superior da estrutura do bate-estacas a observar os trabalhos.

Recordo-me ainda de como era o terreno que o cais veio ocupar. Era um aglomerado de areia e lodo em vias de consolidação rochosa, revestido por vários eucaliptos de grande porte e de acácias. Os eucaliptos foram todos sacrificados à obra. Algumas acácias ainda subsistem na Avenida em frente ao Quiosque.

[Vista parcial de Alcoutim antes da construção do cais. Anos 30]
Vi a última enchente do Guadiana antes do começo das obras. E vi a primeira enchente após a conclusão do cais, quando toda a gente considerava que seria um grande teste à sua resistência. Havia pessoas que pensavam que o cais seria arrastado pelas águas... considerando que a água tinha muita força e nada lhe resistiria.

O estaleiro prolongava-se desde o leito do rio até em frente da Casa dos Condes, mas a passagem em frente da Igreja do Santo António, para a Rua do Município e para os bancos da Capela ficou sempre garantida e disponível.

As escadas hoje junto à Caixa Agrícola e ao Café Soeiro foram construídas com o cais. Antes era possível a passagem em rampa até para animais. Quando o meu Pai vinha com a égua dos lados das Portas do Rio eu saía-lhe ao caminho na proximidade da Igreja do Santo António e vinha montado sozinho, todo feliz, contornando a Igreja Matriz e subindo aquela rampa até à nossa casa.

A construção deste Cais pecou por tardia, tendo-se empenhado muito nessa decisão o Eng. Duarte Pacheco então Ministro das Obras Públicas. Inaugurado em 1944 destinava-se a escoar cereais, palhas, lenha e carvão da parte do Baixo Alentejo que não era servido pelo comboio e a levar adubos e outras cargas em sentido contrário. A evolução brusca dos transportes no fim da Guerra (39-45) matou completamente essa boa ideia.


[O cais como foi construído (sem os acrescentos actuais). População esperava Entidades Oficiais para inaugurar o saneamento básico, em 12.06.1965]

A Vila de Alcoutim era servida antes da Guerra por carreira de camionetas a gasolina. Durante a guerra essas camionetas passaram a usar gasogénio (tinham atrás enormes panelas cilíndricas onde ardia incompletamente carvão vegetal, e o monóxido de carbono resultante, depois de filtrado, era queimado nos cilindros do motor como se fosse gasolina ). Muito rapidamente, no fim da guerra, apareceram as camionetas a gasóleo que transportavam passageiros e, sobretudo levavam as cargas até à casa do cliente... e o transporte fluvial entrou em rápida decadência.

Quando me empreguei no Grémio da Lavoura em 1945, e depois até aos anos 60, os adubos vinham até Alcoutim nos barcos da Sociedade Geral e no regresso escoavam minério do Pomarão. Esse transporte era barato, pois ainda era bom negócio para o Grémio, mesmo pagando dois fretes: - um do Barreiro-Alcoutim efectuado em navio; - outro Barreiro - Vila Real Stº. Antº que, embora não se efectuasse, obrigava o Grémio a pagar à CP 80$00 por tonelada, como a lei impunha, para protecção da C.P.

[Aviso João de Lisboa que trouxe o Presidente Américo Tomás]
Na construção do cais, uma obra pública de grande envergadura que levou vários anos a concluir, os meus condiscípulos e eu vimos equipamentos, tecnologias e métodos de trabalho que eram inéditos até para muitos adultos de então: - Um grande estaleiro, trabalhos com cimento armado, armar o ferro e moldar o betão, uma caldeira produtora de vapor, uma máquina a vapor para elevar os bate-estacas, os bate-estacas, um gerador de electricidade, artífices canteiros a trabalhar a pedra afeiçoando-a e dando-lhe a beleza que hoje nos é dado apreciar.

Neste cais tipo Cais-Ponte a empresa OPCA (Obras Públicas e Cimento Armado) ensaiou algumas técnicas de construção novas.

O técnico responsável por esta obra foi o Eng. Godinho, que residiu em casa localizada onde hoje está o repuxo, e lhe foi cedida pelo Sr. Francisco Madeira do Rosário

O encarregado geral era o Senhor Pedregal, um homem enérgico embora deficiente duma perna, que com um vozeirão característico liderava os homens e conduzia a obra. Dele ouvimos expressões típicas desconhecidas de nós, como: bota aqui o pé de cabra! Entremeados com um ou outro palavrão típico e com pronúncia do Norte.

Um dos capatazes era o Senhor Amadeu filho do Sr. Pedregal.

A obra teve início em 1940 e o seu final e inauguração ocorreu em 1944.

Dos materiais com que foi construído, o cimento e aço vieram naturalmente de fora; areia e cascalho vieram da ribeira e o grauvaque foi extraído no Enxoval e em pedreiras próximo de Alcoutim. Toda a água gasta foi extraída do rio. De fora vieram ainda materiais auxiliares da construção, pranchas e barrotes de madeira e paus de eucalipto.

Começaram por fazer um cais de estacas de eucalipto. Estas estacas eram enterradas à custa de um martelo-pilão de 500 kg. Uma grua accionada a vapor elevava o martelo que na sua queda guiada de vários metros enterrava de cada vez mais uns centímetros de eucalipto.

O cais de madeira serviu de estrutura de suporte para todos os trabalhos posteriores e, no final da obra, foi desmantelado. Foram-lhe colocados em cima uns carris amovíveis, que serviram para levar além de materiais, um outro bate-estacas de 1500 kg a vapor que serviu para espetar as estacas de betão.

As estacas de secção quadrada em betão armado (aço, cimento, areia, cascalho e água) eram feitas em estaleiro em moldes de madeira, tinham o lado a enterrar afilado em forma de pirâmide como um prego, terminando em ponta de aço. Após a sua secagem eram desenformadas, colocadas verticalmente no sítio adequado e o bate estacas fazia o resto até chegarem à rocha firme. Quando necessário as estacas eram acrescentadas no local.

Cada pilar cilíndrico dos que limitam a placa é constituído por quatro estacas juntas em paralelo e que hoje não se podem ver, pois são aquelas que foram abraçadas e prolongadas com aquele formato. Na parte interior do cais, sob a placa, os pilares resultaram de estacas simples como se podem ver.

[La Belle de Cadix atracado ao cais em 2005. Foto JV]

Todo este conjunto de pilares levou um travejamento por vigas, formando uma malha em nível já submergido pelas marés. Por cima, a placa e as escadas de acesso que foram moldadas no local. A placa é constituída por vários partes ao lado umas das outras separadas por espaços de dilatação.

Lindo de ver foi o trabalho de canteiro a afeiçoar pedras para as muralhas, e ainda mais as pedras trabalhadas em forma de paralelepípedo que limitam o recinto ou esplanada do cais e as cimalhas com que rematam todos os muros em volta.

Esta construção garantiu muito trabalho de vários tipos e níveis a pessoas do concelho. Algumas foram recrutadas como futuros trabalhadores da OPCA.

Observe-se ainda na implementação do cais, o belíssimo aproveitamento do terreno disponível, respeitando as antigas infra-estruturas e até valorizando-as. A Estrada Nacional 124, Alcoutim-Porto de Lagos começa no Cais Velho; o Cais Novo foi construído tendo que utilizar essa mesma estrada e a sua construção foi feita sem destruir nem esse cais nem os seus acessos.

A obra dotou-nos dum Cais-Ponte capaz de acolher navios de calado maior do que a barra permite, e de um recinto que desde então passou a ser a sala de visitas da Vila e tem sido o seu grande recinto de festas. Esta obra dotou-nos também de sanitários públicos que representaram um grande benefício, que ainda hoje, fácil é imaginar, na sua falta, o desconforto de forasteiro a quem surgisse uma aflição quando todo o comércio está encerrado.

[Paquete de luxo atracado ao cais em 2005. Foto de JV]

O cais perdeu o fluxo de cargas para que foi construído, mas está cada vez mais a ser utilizado para desembarque de turistas que nos visitam. Oxalá o comércio de Alcoutim se disponha a atendê-los!!!