quarta-feira, 29 de abril de 2009

1940 - 1950 - Como se divertiam os alcoutenejos

Escreve:
GASPAR SANTOS

Habituados como estão aos meios de comunicação que hoje levam às nossas casas diversão e entretenimento, como a rádio, televisão, aparelhagens de som e bons CDs , DVDs e vídeos, muitos Alcoutenejos não suspeitam do isolamento a que estivemos sujeitos nos anos 40 e 50 do Século passado.

Para se entender este isolamento e a carência de notícias que gerava, basta atendermos a que era um acontecimento a chegada pelo rio do “gasolina”, ou pela estrada uma camioneta de carreira. Muita gente de Alcoutim, mesmo sem esperar pessoas, gostava de assistir à chegada e à partida dos transportes.

Exceptuando os bailes que tanto na Vila como em todo o concelho nós protagonizávamos, para o que era suficiente, como animador, um acordeonista (ou com gaita de beiços) ou um grupo constituído por guitarra, bandolim e viola, era raro haver outro divertimento.

Os bailes mais selectos e de frequência mais restrita a que assisti organizava-os a Câmara Municipal no seu salão nobre, em geral por altura da Pinhata. Durante as Feiras Anuais, tanto no S. Marcos no Pereiro como na Feira de Alcoutim, sempre se realizaram bailes. O maior e mais popular passou a realizar-se todos os anos durante a Feira de Alcoutim integrado nas Festas que os jovens efectuam a partir de 1948.

Neste texto não nos ocupamos de futebol, que disputámos algumas vezes com equipas de Mértola, Santana de Cambas, Moreanes, Pomarão e Vila Real Sto António. Nem nos ocupamos de outros desportos de que se disputavam provas por altura das festas da Vila, nomeadamente andebol, voleibol ou outros ligados ao rio como natação ou pau de sebo.


[Os vizinhos espanhois animavam as festas com as suas danças e cantares]

Tivemos algumas vezes representações teatrais efectuadas por companhias de fora, nomeadamente da família de Leonel Mariani Lorador ou récitas organizadas com a prata da casa, que é como quem diz por rapazes e raparigas de Alcoutim.
Essas poucas representações realizavam-se no Teatro da Misericórdia... mas em tão pequeno número que não justificavam manter esse espaço em exclusividade. E por isso esta entidade acabou por alugá-lo ao mestre Manuel Pinto para oficina de carpintaria. Mesmo assim, por cedência deste artífice, ainda se realizaram algumas récitas. Mas no decurso do tempo o equipamento de cena foi-se degradando até o seu uso ser impossível.

Com a prata da casa, integrando rapazes e raparigas de Alcoutim, a Vila ainda teve, aliás com vida muito efémera, um Rancho Folclórico. Tivera também uma banda de música em época mais recuada que eu não cheguei a conhecer. Só vi os instrumentos que o Senhor Silva guardava em sua casa.

Felizmente acompanhámos na Vila, naturalmente com algum atraso, a evolução do cinema. Tivemos amostra de todo o género que a história do cinema relata. Só lamentamos ter sido tão poucas as vezes que tivemos acesso à sétima arte.

Vimos cinema mudo, cinema mudo comentado pelo operador, cinema acompanhado por diálogo suportado por disco a rodar em simultâneo em grafonola, e ainda cinema falado com o som registado na própria fita, sempre a preto e branco. Nem sei se nos anos 50 ainda lá chegou o cinema a cores, assim como as superproduções com grandes ecrãs que começavam então a surgir.

Foi assim que muitos de nós vimos as primeiras obras do cinema mundial, e o cinema dos mestres portugueses António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Manuel de Oliveira etc. Costa do Castelo, Leão da Estrela, Aldeia da Roupa Branca e O Fado, História duma Cantadeira, foram alguns desses filmes.

Esse cinema foi levado a Alcoutim sobretudo por José Martins, um antigo ciclista já retirado da prática desportiva; pelo Secretariado Nacional de Informação (SNI); e pela FNAT hoje INATEL através duma equipa cujo motorista era o José Afonso Fernandes de Alcoutim. O Brigadeiro Manuel Domingos também de Alcoutim era então o Director Geral da FNAT.

O cinema no verão era projectado junto à Casa dos Condes. O ecrã constituído por pano branco suportado entre dois postes situava-se junto ao canto da Igreja de Santo António. A sorte dava o privilégio ao agente da Guarda Fiscal de serviço à vista dos cais de ver o cinema, mas ao contrário, pela transparência do ecrã.

Tanto para o cinema como para qualquer outro espectáculo de circo ou de fantoches, ao ar livre no Verão, cada um levava a sua cadeira de casa.

Foi-nos dado assistir ainda a muitos outros tipos de espectáculos:
Teatro de fantoches ou como então se dizia: - os populares Robertos. Fados e guitarradas. Fados e Guitarradas por grupos de cegos. Ilusionistas, que em geral actuavam na sala da Sociedade Recreativa. Circo e contorcionistas. Pequenos Grupos de circo com animais.

Um destes pequenos circos ficou-me na memória por recorrer a uma cabra que subia a um escadote, no cimo do qual estava um pequeno cilindro de madeira com cerca de 5 cm de diâmetro onde a cabra se equilibrava sobre o topo. Depois, com as suas 4 patinhas e, sem se desequilibrar, dava várias voltas em cima do topo do cilindro.

Por vezes era pedida a participação do público. Chamavam uma pessoa ao palco. Em Alcoutim só havia uma família cujos membros tinham vontade de participar. Eram o mestre João Ricardo ou algum dos filhos. As outras pessoas eram tímidas, não eram capazes de se afoitar, mas...no dia seguinte por todo o lado a inveja falava mais alto e entrava em acção a crítica mais acirrada. Afinal os brandos costumes, como se gosta de dizer, não eram assim tão brandos.

Ainda sobre a participação do público, recordo-me de um espectáculo de circo na Sociedade Recreativa em que chamaram a colaborar um homem que soubesse trabalhar bem com uma marreta. Após muita insistência dos artistas e do público apresentou-se o António Pandeireta.


[Mestre João Ricardo aos 80 anos. Foto J.V.]

O artista do circo em calções e tronco nu propunha-se deixar partir uma enorme pedra sobre a barriga, apenas coberta por uma toalha, sobre os músculos ventrais esticados. Era necessário que o António Pandeireta desse uma marretada sem dó nem piedade em cima da pedra. O Pandeireta estava com receio de magoar o homem... insistiram... ele deitou a língua de fora no seu jeito característico, alçou a marreta e pum... a pedra partiu-se em duas, cada metade foi para seu lado e o homem não se magoou. Foi espectáculo!!! E aplaudido!

O anterior ponto de exclamação, um amigo meu dizia de “espantação”, traduz de facto o meu espanto face aos aplausos. É que o alcoutenejo é muito poupado nos aplausos aos artistas. Constatei isso nos anos 40 e 50 e mais tarde nos anos 70 já com outras gerações, deixarem conceituados artistas desapontados, por não ser reconhecida a sua exibição. Será uma questão de timidez, ou em Alcoutim se parte da convicção de que ao aplaudir, ao reconhecer a valia do artista, se fica apoucado?

A leitura de livros além de jornais (que na melhor hipótese chegavam no dia seguinte) também serviu de entretenimento e para dar alguma cultura aos alcoutenejos. Os livros eram escassos na generalidade nas casas de Alcoutim, mas essa lacuna foi temporariamente colmatada com a vinda de fora de bibliotecas itinerantes que nos deram oportunidade de ler algumas obras, porém sem outro critério que não fosse a nossa própria escolha. No entanto sempre foi melhor do que não as ter lido. As bibliotecas exibiam um “catálogo” com o nome das obras e o nome do autor e nós escolhíamos.


[Dançando as "Sevilhanas" no Cais Novo"]

Duas entidades deram-nos essa possibilidade: primeiro o SNI – Secretariado Nacional de Informação e depois a Fundação Calouste Gulbenkian. Foi nessa altura que eu “devorei” dezenas de livros.

Os folhetins radiofónicos ainda não tinham sido iniciados mas já os jornais, O Século e o Diário de Notícias, publicavam todos os dias uma página de um romance em folhetim que muitas pessoas liam avidamente. Mas o que me parece, aos olhos de hoje, muito especial é um tipo de leitura a que chamarei leitura para audiência colectiva.

Suponho que provinha de biblioteca itinerante ou de folhetim de jornal, um livro muito grande de aventuras ficcionadas cujo herói era o Rocambole do autor francês Ponson du Terrail que mestre João Madeira, vulgo João Ricardo, lia para várias pessoas ao serão na Rua 1º de Maio, durante as noites quentes de Verão. Havia, naturalmente, a descrição de cenas mais hilariantes ou mais violentas que entusiasmavam o António do Vinagre e as comentava e incitava o herói da maneira mais exuberante possível: Aí Rocambole! Aí Rocambole! Como se fosse possível modificar os acontecimentos por meio desses incitamentos. De longe, os jovens achavam graça e rejubilavam com este espectáculo.

Noutras noites de Verão havia, também, música nessa mesma rua. O Senhor Manuel Serafim acompanhava à viola uma guitarra ou bandolim dedilhado pelo Felício, Fernando Martins ou outro executante à porta da Sociedade Recreativa.

As partidas e as brincadeiras, que não eram exclusivo do mestre Carlos constituíam, também, um divertimento de muitos alcoutenejos, à custa no entanto do achincalhamento, e da troça de alguém.