sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Lembrando o Dr. João Lopes Dias, o último "João Semana "de Alcoutim, na passagem do 1º aniversário do seu falecimento.



(Publicado no Jornal do Baixo Guadiana, nº 99, de Julho de 2008, pág. 23)


Esta nova secção do blogue (Ecos da Imprensa) destina-se à publicação de artigos que saíram na imprensa regional.
Quero afirmar que só o serão aqui depois de lá o terem sido e nunca antes.
A razão para tal tem a ver com a existência de “visitantes” que não são leitores do jornal em que foram publicados.



Agora que se passou um ano sobre a sua morte, espero conseguir alinhavar meia dúzia de palavras sobre a sua FIGURA.

Conheci-o em 1967 quando cheguei a Alcoutim para exercer a minha profissão. Era então e foi-o enquanto lá exerceu funções, o único profissional de saúde existente em todo o concelho!

Afável, cordial, conversador, o seu Alcoutim era a melhor terra do Mundo! Ali tinha nascido, (1932.09.05) ali deu os primeiros passos, ali brincou e frequentou a escola primária arranjando os primeiros amigos que perduraram pela vida fora. Se houvesse aonde, também teria feito o liceu. Fê-lo em Faro como aconteceu a muitos dos algarvios do seu tempo.

Quando se encontrava frequentando o curso de medicina na Universidade de Coimbra, falece repentinamente em Alcoutim o seu pai, o conceituadíssimo médico e cirurgião, Dr. João Francisco Dias.

Logo que pode exercer medicina, instala-se em Alcoutim e começa a trabalhar (1963) na única profissão que desejou ter e dignificou.

Nomeado médico municipal, exerce igualmente o lugar de Subdelegado de Saúde no concelho.

O Hospital da Misericórdia volta a funcionar através da sua perseverante acção. Tal como seu pai e existindo falta de outros profissionais de saúde, ministra alguns ensinamentos a jovens que o vão ajudando no que podem.

O pequenino hospital tinha sempre gente internada que merecia o seu atento cuidado.

Uma pequena divisão funcionava como sala de partos e muitos por lá se fizeram com êxito, não constando qualquer complicação grave.

A gravidez de minha mulher foi por ele seguida com todo o cuidado até ao momento de seguir para o hospital de Loulé onde dois médicos a esperavam por sua indicação amiga.

Durante umas férias balneares, a minha mulher sentiu necessidade de levar o filho a um médico que lhe receitou um antibiótico. Quando contei o facto ao Dr. Dias, comentou:- Anda aqui um homem a evitar isso e ao primeiro embate, já está!

Quando os filhos apareciam adoentados e a esposa lhe chamava a atenção para o facto, não dava importância ao assunto pois isso passaria. E era quase sempre assim. Só actuava quando as coisas se mantinham.


Em relação ao meu filho, ainda bebé, mandava-me fazer os vapores e isso passaria.

Hoje verifico em relação à minha neta que o comportamento do pediatra é igual, só que os vapores naturalmente sofreram uma evolução.

O único táxi existente no concelho encontrava-se em Martim Longo e a vila possuía meia dúzia de automóveis, alguns só circulavam “quando o rei fazia anos”!

O único automóvel que o médico possuía para as suas deslocações, para tudo servia, já que não existia uma ambulância. Em caso de acidentes, recorria-se a Vila Real de Sto. António ou a Mértola, como aconteceu em 1971 ou próximo disso quando num grave acidentes de viação ocorrido perto de Sta. Marta houve vítimas mortais e feridos graves que receberam os primeiros socorros no hospital de Alcoutim.

As estradas resumiam-se às 122 e 124 e as poucas mais que havia eram de macadame, normalmente em mau estado.

Ainda que a linha descendente de população já fosse um facto bem notório desde os meados do século, era muita gente ao cuidado de um único médico que se desdobrava para todos atender. Chamado muitas vezes de noite, havendo já telefone fixo, aproximava-se o mais possível do lugar em que estivesse o doente. Lá estava alguém que, quando muito distante, levava um animal para transportar o clínico ao domicílio do doente. A luz eléctrica ainda era uma miragem por esses montes e aldeias! No tempo de seu pai vinha um homem com duas bestas buscar o médico!

O Dr. Dias interessou-se ao longo da sua vida por tudo o que dissesse respeito à sua terra e era sempre ouvido dando a sua opinião, porém, quando procuravam que liderasse o assunto, dizia sempre:sou médico e isso chega-me, ajudarei sempre naquilo que estiver ao meu alcance e assim era. Ouvi-lhe sempre dizer isto quando lhe era apresentada tal situação.

Amante da terra onde nasceu, tinha um carinho especial pelas Festas Anuais que com seu irmão e outros jovens ajudou a criar (1951).

Comentou-me algumas vezes a relação afectiva com o exercício da medicina pois são situações que não se dão muito bem.


Em 1972 é convidado para director do novo Hospital de São Brás de Alportel e isso veio colocar-lhe um grande dilema.

A notícia correu célere no pequeno meio e em todo o concelho ouvindo-se as mais disparatadas opiniões. Desde a solução de passar pelo aumento das consultas preconizada por um responsável político local que segundo a sua visão retrógrada punha o dinheiro à cabeça de tudo, até às mais injustas observações, de tudo ouvi.

Quando nos encontrámos um dia e me falou no assunto, sabendo eu já o que se passava em linhas gerais e depois de ser mais concreto sobre determinadas situações, disse-lhe que se eu estivesse nessa situação, aceitaria de imediato o convite sem qualquer dúvida. Ele não podia prejudicar a sua vida profissional e a de toda a família para olhar por um concelho pelo qual não podia responder.

Durante bastantes meses ficámos sem médico e as certidões de óbito começaram a ser passadas pelos Regedores das Freguesias, mas como é evidente, a culpa era de toda a gente, menos do Dr. João Dias.


Só havia um médico a cerca de quarenta quilómetros de distância!

Pela minha parte e quando necessário, mesmo depois de haver clínico em Alcoutim, recorria a São Brás de Alportel ao Dr. João Dias e em alternativa a Mértola, ao Dr. Santos Martins.

Isto sem desprimor para qualquer outro, ter confiança no médico é meio caminho andado para a resolução das situações, nunca tive dúvidas nenhumas sobre isso e o Dr. João Lopes Dias inspirou-me sempre confiança profissional.

O seu consultório estava normalmente cheio.

De vez em quando lá aparecia em S. Brás por causa de algum membro da família e era sabido que tinha que ir almoçar ou jantar a sua casa, não dando outra alternativa.

Se em Alcoutim trabalhava muito, em S. Brás não era menos, ainda que em situação muito diferente.

Quando via que o assunto já não era para ele, encaminhava-nos para o local que considerava mais adequado.

Perdemos mais o contacto a partir de 1977 quando saí de Alcoutim à procura de melhores condições de vida e da carreira profissional.

A partir de 1987 começámos a encontrar-nos mais vezes na vila e em eventos lá realizados, sempre conversando sobre Alcoutim e as suas necessidades. De uma das vezes fez questão de irmos dar uma volta no seu novo barco, o que foi muito agradável e interessante, não me esquecendo eu que foi ele que me levou em 1968 a conhecer o Guadiana até ao Pomarão, então num pequeno barquinho que parecia uma casca de noz. Encontrámos cágados no percurso talvez do tamanho do barco!

O Dr. Dias nunca deixou de se preocupar pela minha saúde e dos meus, não se esquecendo de indagar do nosso estado, chamando sempre a atenção para o controlo das situações. São coisas que jamais esquecerei.

Quando jovem, com seu irmão e outros alcoutenejos, fundou o Grupo Desportivo de Alcoutim, (1948) ao qual chegou a presidir (1954/55).

Os últimos contactos que com ele tive foram bem penosos para ambas as partes, mas principalmente para ele.

Faleceu no Hospital de Faro em 13 de Maio de 2007, vindo a ser sepultado no cemitério da vila que o viu nascer e que tanto amava e com grande acompanhamento, dos maiores a que tenho assistido em Alcoutim.

Quando vou a Alcoutim, estou sempre à espera de o encontrar, nomeadamente junto ao rio. Cada vez se torna mais difícil discutir Alcoutim com realismo e sensatez!
Foi esta a altura que escolhi para prestar a minha simples e devida homenagem ao MÉDICO e ao ALCOUTENEJO.


Nota do autor Este artigo foi escrito para ser publicado no nº de Maio deste jornal, do qual o Dr. Dias era assíduo leitor, mas razões alheias à minha vontade, não o possibilitaram, ainda que o venha a ser agora.