quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Corte Tabelião

(ENTRE OS RIBEIROS DOS LADRÕES E DO ALCOUTENEJO)

No decorrer dos anos tenho, dentro das minhas modestas possibilidades, dado a conhecer, algo do passado e do presente das aldeias cabeças de freguesia do concelho de Alcoutim e de outras suas dependentes, aqui designadas por “montes”, respeitando assim a tradição local. Aumentando os meus conhecimentos, estimula-se a minha motivação o que me possibilita uma abordagem no tempo e no espaço.

Os parâmetros que nos norteiam, são sempre os mesmos, referir a verdade, recuar o mais possível no tempo e chegar aos dias de hoje, metas que não alcançamos com a profundidade e eficiência que desejamos. Não podemos coarctar o sentimentalismo que este ou aquele “monte” nos provoca pelos mais variados motivos e que por vezes não sabemos explicar.

Iremos hoje dizer algo sobre um pequeno monte, sendo naturalmente a sua localização, o primeiro objectivo. Pelo título, já sabemos que se encontra entre o ribeiro (aqui barrancos) dos Ladrões e o do Alcoutenejo. Vamos admitir que nos encontramos na vila de Alcoutim, a cujo concelho e freguesia pertence. Seguimos a estrada 122 - 1 que após seis quilómetros nos encontramos nas Quatro Estradas ou Cruzamento. Tomamos a direita seguindo a indicação de Beja. Já na estrada 122 aparece-nos a placa indicativa de BEJA - 85 km. Depois entramos em curvas e aproximamo-nos do vale provocado pelo ribeiro dos Ladrões que atravessamos por larga ponte. Em 1939 o Governador Civil comunica à Câmara Municipal de Alcoutim que tinha sido concedida a verba de 1700 contos para a estrada do Vascão, ao quilómetro seis da estrada Alcoutim – Pereiro. (1)

O topónimo Ladrões, ou o seu singular, aparece com alguma frequência no país. Este local era escolhido para se passar a vau (2) sendo por isso aproveitado pelos salteadores para se acoitarem e porem em prática os seus maus desígnios.

Voltamos a subir e aparece-nos, à direita, um entroncamento assinalado com CORTE TABELIÃO - 2 km.

No local existe um refúgio para utilizadores de transportes públicos e também a indicação de Barragem a que a mesma estrada nos levará. Vamos por ela. Tem a matriz nº 1055 e construída, se a memória não nos falha, em 1977/78 e foi nesta altura que fomos pela primeira vez ao monte para o conhecer. É estreita, asfaltada e constitui na sua maior extensão, uma recta que se desenrola em vários planos. Ao redor, são tudo campos de esteva e onde antigamente se praticava a cerealicultura, principalmente o trigo. Naquele “deserto”, os postes do telefone chamam a atenção. Antes de chegarmos ao monte, a estrada descreve uma curva.

A pequena povoação, de tipo concentrado, aconchega-se numa pequena elevação (cota 132) e quando a vislumbrámos, reparámos em dois ou três eucaliptos de altura considerável. As suas construções são ao gosto regional, casas de xisto e grauvaque empilhados e telhados de caniço e telha de canudo, fabricada ainda nos fornos das redondezas, completamente desaparecidos. As reconstruções e arranjos mais recentes, já não são deste tipo pois o tijolo e as placas de cimento imperam. Reparámos numa chaminé, com algum interesse.


Em 1839 (3) possuía vinte e quatro fogos e cento e cinquenta e dois anos depois (4) tinha só mais um!

No ano de 1850 nasceram neste monte três crianças.

Em 1976 viviam na pequena povoação ainda trinta e nove pessoas a atestar por elementos então recolhidos pelo Centro de Saúde. O Censo de 1991 dá-lhe dezassete habitantes, sendo oito do sexo masculino. Em contagem que fizemos em 1998 eram doze que viviam em oito fogos, não havendo crianças.

Tem energia eléctrica, recolha de lixo e tinha água distribuída por quatro fontanários, com estação elevatória datada de 1988. Hoje, substituíram os fontanários levando a água às habitações. (5)

A Corte Tabelião teria sido o último ou dos últimos montes da freguesia a ter distribuição domiciliária de correio, nunca tendo havido um condutor de malas como acontecia com outras povoações. As crianças vinham à escola à vila e eram elas que transportavam a correspondência quando existia e devia ser muito pouca já que nessa altura não havia a factura da luz ou do telefone e as reformas da segurança social quase inexistentes no concelho. As da Caixa Geral de Aposentações tinham então dia certo para serem recebidas, com deslocação dos interessados à vila e então a de maior montante era paga a um residente neste monte.

O número de moradores nunca justificou a existência de qualquer estabelecimento comercial.

O monte que lhe fica mais próximo é a Corte da Seda com quem mantinha alguma relação, mesmo de laços sanguíneos.

A primeira estrada construída no concelho de Alcoutim e que ligou a vila à aldeia do Pereiro, teve lugar após a Grande Cheia do Guadiana de 1876/77, sendo o trabalho oferecido, uma maneira de minimizar a extrema pobreza em que o povo ficou, esteve marcada por este monte mas acabou por deixá-lo completamente isolado durante um século.

As deslocações à vila faziam-se a pé ou de burro, pelo caminho velho. Há quarenta anos ainda se vinha com frequência à vila vender leite e por vezes queijos frescos.

A pastorícia foi sempre uma actividade básica, principalmente de gado miúdo, ovino e caprino e ligada à cerealicultura. Este binómio era a base, o resto acessório.

A lembrança desta época ainda é patente, por todo o espaço circundante, nos currais de pedra que subsistem, apesar de meio derrubados pelo tempo.

Sabemos que em 1771, Manuel Lourenço Revez, de CORTES TABALLIAN, fazia na Câmara Municipal de Alcoutim o arrolamento dos seus gados, constituído por reses, cabras e ovelhas. (6)

Em 1840 (7) informa-se que Ultimamente também se proibiu o lavar no Pego do Inferno, que está entre Corte da Seda e Corte Tabelião, ficando como coimeiro até ao fim de Setembro.

Os moradores de Corte Tabelião requerem à Câmara que em conformidade com a Postura fosse declarado coimeiro para o gado miúdo, até 15 de Agosto, certa porção de restolhos próximos do dito monte, para servirem de pastagem às reses e bestas durante o tempo das debulhas, atendendo à escassez de pastos.

Achando justa a pretensão, a Câmara considerou coimeiros os restolhos que ficam aquém do monte de Corte Tabelião até ao barranco dos Ladrões, entre este e o de Alcoutenejo, ficando porém libertas as águas de um e outro barranco para os gados miúdos e duzentos passos em redor para comodamente os gados poderem chegar às águas. (8)
A pastorícia ocupou sempre o pensamento destes povos e em 1848 “são muitos os clamores dos povos contra a derrama directa, pedindo que haja rendeiros do ver, como antigamente se praticava, o que obrigou a uma sessão de Câmara para o assunto ser discutido, tendo-se adoptado que haja rendeiros do ver, um no limite de cima e outro no de baixo, devendo tais rendas ser postas em praça. (9)

Assim aconteceu até 1864, tendo sido arrematante, do limite de cima (do concelho) de 1853 a 1857, Tibúrcio Gomes, do monte de Corte Tabelião.

Em 1866 não aparecem concorrentes à arrematação das rendas pelo que a Câmara delibera nomear zeladores para cada uma das freguesias no sentido de fazer cumprir a Postura. Para a freguesia de Alcoutim veio a ser escolhido o experiente Tibúrcio Gomes, que veio a ser substituído por José Peres, do Cercado.

As arrematações voltaram em 1877, tendo desaparecido em 1879.

Notícias de outra índole encontrámos nas nossas leituras.

Quando se deliberou, por unanimidade, construir o actual cemitério da vila e para o efeito se fez uma reunião, na Capela de Nª Sª da Conceição, com representantes de todos os montes da freguesia, deu voz à Corte Tabelião, José Nobre. (10)

Não podemos deixar de referir uma situação dramática passada nesta povoação e que representa uma época. Aqui vivia uma criança de cinco anos, órfã de pai e mãe e deficiente, “muda e parva” na linguagem utilizada, a qual se vive é somente devido à caridade de alguns moradores.

A Câmara, reunida (11) em sessão, considera-a como se fosse enjeitada, sendo entregue a uma mulher para a sustentar e criar, vencendo pelo seu trabalho como se fosse ama de criação.
Em 26 de Maio de 1874 um espanhol roubou um jumento em Martim Longo, mas no dia seguinte foi encontrado na Corte Tabelião por um grupo de homens que o vinha perseguindo. Presente na Administração do Concelho, foi-lhe levantado o competente auto. (14)
A Cheia do Guadiana de 1876/77 causou prejuízos a moradores deste monte, certamente em propriedades que tinham junto ao rio, sendo os mais prejudicados, Ana Cavaco, viúva de José Lourenço (150$000), António Mestre, Vº e Francisca Mestra, Vª, ambos com prejuízos calculados em 50$000 réis. (12)

Nas redondezas, no Cerro do Seixal, existem vestígios de um castro Lusitano de povoamento, mais tarde aproveitado e transformado pelos romanos para aquartelamento (15) e na Alcaria das Pegas, igualmente reminiscências de uma povoação romana e medieval. (13)

O topónimo, único existente no país, mas com variações em Évora (Quinta do Tabelião), Lisboa e Óbidos (Casal do Tabelião) e em que Corte, além de muito mais coisas designa prédio, casal, e possivelmente proveniente do repovoamento nacional e Tabelião a velha profissão, próxima do poder administrativo e ainda existente com outras roupagens. O tabelião de então teria ali a sua corte que para se distinguir de outras, lhe foi buscar o nome. Isto não é complicado, complicado é saber quem foi o tal tabelião!

Não vamos ficar por aqui pois consideramos importante o que falta dizer para quem procura o turismo da natureza.

Deixemos a Corte Tabelião seguindo um caminho de terra batida, à procura de surpresas. À saída, depois de umas dezenas de metros, encontramos dois caminhos e tomemos e da esquerda.

Muros de pedra solta construídos para protecção do arvoredo. Comecemos a descer e o caminho vai piorando a olhos vistos. Aproveitando as ajudas comunitárias, uma plantação recente de pinheiros.

O terreno é bastante acidentado, dominando as alfarrobeiras, amendoeiras e oliveiras, onde o sítio permite. Nas escarpas, até o gado tem dificuldade em se manter.

Continuemos a descer e de repente surge-nos uma povoação. É sempre uma boa oportunidade para fazer uma fotografia mas... cuidado, está a fotografar, ainda que lhe pareça impossível, povoação espanhola! É Sanlúcar com o seu castelo que parece poder abraçar-nos. E onde está o rio? Não se vê! Continuemos a descer, os desníveis são acentuados e agora ao fundo, água - é a albufeira da barragem. Com uma cota de 55 metros, a sua construção foi posta a concurso em 1991 (16) encontrando-se há muito concluída. Presentemente, a utilidade que lhe conheço, é servir de água a praia fluvial, uma vez que a vila e parte do concelho é abastecido de água potável através da barragem de Odeleite.


Depois de espraiarmos a vista pelo local, experimentando uma sensação de conforto, continuemos a nossa jornada. Naturalmente que o caminho é a subir. À nossa esquerda, após pequeno desvio, fica uma vivenda relativamente nova. O caminho começa a empinar e lá no cimo, também à esquerda, as ruínas dos moinhos Queimados ou dos Cadavais, impregnados de lendas. Agora, é sempre a descer. Sanlúcar e Alcoutim vão-se descobrindo a cada passo. Ao aproximarmo-nos da vila, temos de fazer curva e contra curva bem pronunciadas, em “S”. Atravessamos a ribeira de Cadavais e vamos sair junto ao Lar de Idosos.


Apesar do desgaste que me provoca no veículo, é percurso que faço gosto de mostrar aos amigos que me visitam.

O que então escrevi sobre este trajecto, está inteiramente ultrapassado, pois a situação actual é completamente diferente.

Este caminho rural, depois de algumas alterações, principalmente no seu acesso à vila e numa extensão aproximada de 3 900 metros, foi pavimentado em betão betuminoso e incrementada sinalização horizontal e vertical, acontecendo a sua inauguração em 12 de Agosto de 2006, com descerramento da placa comemorativa da inauguração pelo Presidente da Câmara, Dr. Francisco Amaral. (17)

De há uns anos a esta parte, a pequena povoação que terá presentemente três ou quatro habitantes permanentes, vem realizando no mês de Agosto uma pequena festa anual com realizações religiosas e profanas.


NOTAS

(1) - Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 25 de Fevereiro de 1939
(2) - "No Algarve vadeavam-se ainda no século XVIII, os ribeiros de (...) e dos Ladrões". - Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV - A. H. Oliveira Marques.
(3) - Corografia ou Memória Económica, Estatística e Topográfica do Reino do Algarve , J.B. Silva Lopes
(4) - Censo populacional de 1991.
(5) - Alcoutim - Revista Municipal, nº 10 - Dez. 2003.
(6) - Manifeztoz - Arolam (toz) da Camera doz gadoz
(7) - Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 21 de Junho de 1840.
(8) - Acta da Sessão da câmara Municipal de 7 de Junho de 1849.
(9) - Acta da sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 7 de Julho de 1848.
(10) - Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 22 de Dezembro de 1843.
(11) - Acta da sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 12 de Setembro de 1847
(12) - Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 24 de Abril de 1877.
(13) - "Regulamento do Plano Director Municipal de Alcoutim", Diário da República - I Série B de 12 de Dezembro de 1995.
(14) - Of. nº 42 de 27 de Maio de 1874 do Administrador do Concelho de Alcoutim.
(15) - Monumentos Militares Portugueses - 1946 - General João de Almeida.
(16) - Jornal do Algarve de 10 de Outubro de 1991 - Vila Real de Santo António.
(17) -Alcoutim – Revista Municipal, nº13, Dezembro de 2006, pág. 9